Espacios. Vol. 25 (3) 2004

C&T no nível local: uma proposta de esquerda

C&T a nivel local: Una propuesta de izquierda
S&T at local level: a left proposal

Renato Dagnino


5. Características do potencial de C&T instalado nas cidades

Como não poderia ser de outra forma, os governos municipais que têm desenvolvido ações na área de C&T são os de cidades onde existe algum potencial de C&T instalado.
Uma primeira característica desse potencial é seu alinhamento com os interesses das elites econômicas e políticas que controlam os processos econômico-produtivos, o meio-ambiente, e os próprios trabalhadores em benefício da acumulação do capital.

Esse alinhamento não está determinado por uma orientação particularmente privatista, míope ou corporativa dos seus responsáveis e sim por um senso comum ainda hoje hegemônico, inclusive em muitos setores da esquerda. Conformado através de uma série de ações aparentemente aleatórias, ele reflete o modo ideologicamente comprometido com a acumulação de capital como se pensa a C&T:

Essa visão da C&T, ideologicamente construída ao longo de um processo que se inicia com o próprio surgimento do capitalismo, e que se incorporou ao “senso comum” de nossa sociedade, torna difícil alterar o alinhamento desse complexo com interesses contrários aos das elites dominantes sem que um profundo debate se realize no âmbito da esquerda.

Até que ele ocorra, o conhecimento que esse complexo produz e difunde, muitas vezes contrariando a visão de mundo e a postura ideológica dos seus pesquisadores, dificilmente poderá ser usado para promover o estilo de desenvolvimento socialmente justo e ambientalmente sustentável que a esquerda deseja.

A segunda característica é a pouca relevância desse complexo para as equipes que, qualquer que tenha sido seu projeto político, têm ocupado os governos municipais. Suas demandas cognitivas, associadas à gestão pública e à satisfação dos interesses dos grupos que lhes dão sustentabilidade política (que vão dos grandes empresários aos segmentos marginalizados), não têm encontrado, nesse complexo, elementos significativos para sua satisfação em patamares mais elevados. Nem os programas de inclusão social, que buscam proporcionar oportunidades sustentáveis de trabalho e renda, nem as iniciativas de atrair empresas multinacionais intensivas em “alta tecnologia”, têm aí encontrado o conhecimento científico e tecnológico que necessitam.

A relativamente escassa relevância do conhecimento difundido por esse complexo e, sua conseqüente pequena importância para a implementação de políticas públicas não se verifica apenas em relação à instância municipal. De fato, a intervenção do Estado brasileiro na área de C&T, concentrada na instância federal no que respeita à sua regulação e ao financiamento, tem-se orientado para a geração de capacidade de oferta de conhecimento e não para a sua incorporação aos distintos projetos políticos que se expressam em nossa sociedade.

6. Governos municipais e Parques e Pólos Tecnológicos

A percepção desse distanciamento levou a que governos de algumas cidades passassem a se preocupar, no final dos anos 70, em promover a utilização de seu potencial de C&T. Isto ocorreu de modo coerente com seu alinhamento com demandas bem distintas daquelas da maioria da população e, também, com a postura ideológica desses governos. Essa iniciativa foi deixada, como era natural que ocorresse numa área politicamente marginal, e em que a comunidade científica era legitimada como proprietária de um saber “neutro” e portador do progresso, nas mãos do projeto político dominante no seu âmbito. Assumiu o controle dessa iniciativa uma parte dessa comunidade, que passou a implementar seu projeto: colocar esse potencial a serviço de segmentos produtivos de “alta tecnologia”.

Isso ocorreu no bojo de um movimento de emulação da experiência norte-americana de Parques e Pólos Tecnológicos que em meados dos 80, em função do vácuo deixado pelo Projeto-Brasil-Grande-Potência, foi envolvendo gestores públicos que, talvez por default, permitiram que se tornasse ideologicamente dominante na PCT nacional.

Embora sejam freqüentemente tratados de forma indistinta, talvez porque ambos tenham seu núcleo na universidade e tenham recebido apoio de governos municipais, esses dois arranjos institucionais possuem significado distinto e trajetórias algo diferentes em nosso meio. De fato, foi em torno deles que se desenvolveram as iniciativas do pequeno número de Prefeituras brasileiras que atuam na área de C&T.

O primeiro deles – o dos Parques Tecnológicos - foi implantado em torno das universidades públicas onde aquele projeto era mais bem aceito visando à incubação de “empresas de base tecnológica” criadas por professores e ex-alunos a partir de pesquisas com aplicação tecnológica. É uma iniciativa de custo inicial relativamente modesto, que tem lugar no próprio espaço físico e laboratorial da universidade e não demanda, como o segundo, investimento imobiliário.

Passadas quase duas décadas, esses arranjos, quase 200, segundo os que os patrocinam, incubam anualmente 2000 empresas, das quais menos da metade completam um ano de vida, gerando cada uma média de 10 empregos.

Avaliações baseadas em evidencia empírica realizados no País têm corroborado o que já se sabe a respeito do relativamente pequeno impacto dos Parques Tecnológicos situados nos países avançados. Eles têm mostrado, por exemplo, que o custo das incubadoras, caso computadas as bolsas, auxílios a projeto e outros recursos alocados por instituições de financiamento como CNPq, Finep, Fapesp, etc e de entidades como o Sebrae, é bem maior do que aquele explicitado pelas universidades e prefeituras que as apóiam. E, ademais, que as empresas são em geral desenvolvedoras de softwares que não podem ser considerados, nem mesmo pelos professores com elas engajados, de “alta tecnologia”; que a dificuldade das empresas em se manter no mercado é em geral tão grande que onerosos mecanismos de “pós-incubação” são hoje adotados em quase todas as incubadoras; que seu benefício para a universidade é quase nulo; e sua contribuição para a sociedade muito pequena. O impacto econômico alegado na geração de emprego tem também sido contestado. Mas se aceitos, ele seria de uns 10 mil empregos “firmes” gerados por ano num país em que chegam ao mercado de trabalho 1,5 milhão de pessoas por ano.

Assim, nos escassos casos em que foram bem-sucedidas, essas empresas apenas lograram beneficiar seus proprietários – professores ou alunos da universidade - e uns poucos empregados, em geral na produção de bens e serviços demandados pelas grandes empresas nacionais e multinacionais localizadas na região.

O segundo arranjo, os Pólos Tecnológicos, também situados, não por casualidade, próximo às universidades, visava, basicamente, criar um pólo de atração de grandes empresas para que viessem neles desenvolver tecnologia “de ponta”; preferencialmente multinacionais, porque são elas que têm recursos para isso. Assim, essas grandes empresas vindas de fora gerariam empregos “limpos” e de “qualidade”, efeitos indiretos de encadeamento industrial, impostos etc, enfim, atividade econômica. Além disso, e muito importante para o projeto político daquela parte da comunidade de pesquisa diretamente interessada, demandariam resultados desenvolvidas na universidade gerando recursos e potencializando as atividades de professores e alunos e mobilizariam a rede de “empresas de base tecnológica” incubadas nos Parques Tecnológicos. O pacote institucional “Parques e Pólos”, e daí em parte o uso indiscriminado dos dois arranjos, passava a ser cuidadosa e atrativamente embrulhado...

Versão pós-moderna dos “Distritos Industriais”, os Pólos são iniciativas bem mais ambiciosas que ultrapassam a capacidade organizativa, financeira e de articulação política da universidade. Demandam legislação de incentivo fiscal específica, supõem a existência de uma área próxima à universidade capaz de abrigar as empresas interessadas, e podem implicar num considerável investimento imobiliário.

A observação da experiência brasileira de Pólos Tecnológicos tem mostrado também um quadro modesto. Nem mesmo quando se utilizou o expediente da “guerra fiscal” foi possível atrair empresas na quantidade e com a “qualidade” esperada. Pólos como o criado em Campinas no início dos anos 90 com o apoio da Prefeitura, que possui o respaldo de legislação específica para atrair empresas de base tecnológica, tem conseguido resultados apenas sofríveis.

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