Espacios. Vol. 27 (2) 2006. Pág. 19

Tecnologia social: retomando um debate

Tecnologia social: retomando um debate

Social technology: To retake a debate

Renato Dagnino


1 Como é a tecnologia convencional?

Abaixo, para fixar idéias e guiar o leitor, e tal como farei ao longo deste trabalho, apresento uma síntese do que estou expondo.

1. Como é a TC?
  • Mais poupadora de mão-de-obra do que seria conveniente;
  • Possui escalas ótimas de produção sempre cresceentes;
  • Ambientalmente insustentável;
  • Intensiva em insumos sintéticos e produzidos por grandes empresas;
  • Sua cadência de produção é dada pelas máquinas;
  • Possui controles coercitivos que diminuem produtividade;

Sobre a primeira questão - de como é a Tecnologia Convencional? - eu diria que ela é mais poupadora de mão-de-obra do que seria conveniente.

A história da tecnologia, a história da produção do conhecimento, mostra uma trajetória de economia do trabalho humano. Se isso é inerente à maneira do homem trabalhar, de se relacionar com a natureza, ou se é algo específico de um momento ou um estágio de sua passagem sobre o nosso planeta, não vem agora ao caso. Mas até que ponto a tecnologia capitalista, essa Tecnologia Convencional poupa trabalho humano mais do que seria conveniente, é uma questão a ser trabalhada, a ser pensada. O que posso dizer, preliminarmente, é que ela é mais poupadora de mão-de-obra do que seria conveniente porque o lucro das empresas depende de uma constante redução da mão-de-obra incorporada ao produto, ou do tempo de trabalho socialmente necessário para produzir mercadorias.

A Tecnologia Convencional maximiza a produtividade em relação à mão-de-obra ocupada. Na realidade, o indicador de produtividade que correntemente se utiliza é enviesado, não é um indicador neutro. Ele implica que se esteja sempre considerando mais produtiva uma empresa que diminui o denominador da fração produção por mão-de-obra ocupada. Assim, por exemplo, se uma empresa consegue diminuir a mão-de-obra numa proporção maior do que diminuiu sua produção, ela se torna mais “produtiva”. Não importa se o que fez foi “enxugar” o pessoal através de uma reorganização do processo de trabalho que possibilita que um mesmo trabalhador tenha agora que desempenhar uma tarefa antes realizada por dois. Quando o indicador de produtividade é estimado em termos monetários, ele se revela ainda mais enviesado. Neste caso, cada vez que uma empresa consegue diminuir o valor de sua folha de salários (por exemplo, despedindo trabalhadores com mais “tempo de casa” e contratando para a mesma função outros mais jovens), ela se torna mais “produtiva”. O que mostra que os próprios indicadores que vamos ter que utilizar para avaliar tecnologias auto-gestionárias terão que ser bem diferentes.

1. Como é a TC?
  • Segmentada não permite controle do produtor direto.
  • Alienante não utiliza a potencialidade do produtor direto.
  • Hierarquizada demanda a figura do propietario, chefe, etc.
  • Maximiza produtividade em relação à mâo-de-obra ocupada, etc.
  • Possui padrões orientados pelo mercado externo de alta renda.
  • Monopolizada pelas grandes empresas dos paises ricos.

Diria também que ela possui escalas ótimas de produção sempre crescentes. Ou seja, a cada nova vindima (safra) tecnológica, a cada nova onda tecnológica ou a cada novo conjunto de inovações, as tecnologias produzidas possuem escala cada vez maior. Ou seja, a escala de produção ótima é crescente. Trocando em miúdos, se você quer instalar hoje uma fábrica de automóveis turn key (“chave na mão”) no estado da arte para produzir 5 unidades por semana, não irá encontrar. Essa fábrica existia no começo do século XX, no começo do século XXI ela não existe mais. Ou, se existe, não é mais a que se poderia considerar como estando no estado da arte. De tal forma que um pequeno capitalista, um pequeno empresário, estará sempre em condições de desvantagem em relação àquele que possui recursos suficientes para adquirir a última tecnologia. Ele terá que se contentar em utilizar uma tecnologia que não é a mais eficiente segundo os parâmetros capitalistas. Isso gera um grande problema praticamente insolúvel, dentro dos marcos da Tecnologia Convencional, para o pequeno empresário capitalista. A utilização da Tecnologia Convencional implica numa condição de desvantagem inerente para o pequeno produtor e é quase que um impedimento para a sustentabilidade (ou usando o jargão da moda, competitividade) do empreendimento - quase que por definição, pequeno - auto-gestionário.

Além disso, ela é ambientalmente insustentável, porque o capitalismo não considera a deterioração do meio-ambiente como custo, como vocês sabem, em sua contabilidade. A forma como se concebe ou projeta a tecnologia no capitalismo não leva em conta uma série de parâmetros. Não é só o meio-ambiente que é considerado uma “externalidade”. Obrigar o trabalhador a fazer durante 30 anos uma tarefa repetitiva e insalubre, condenar milhões de pessoas (dois milhões só em São Paulo) ao desemprego, como não “custa” nada, não pode ser internalizado no calculo técnico-econômico que as empresas usam para desenvolver tecnologia.

A Tecnologia Convencional é intensiva em insumos sintéticos produzidos por grandes empresas. O que além de ambientalmente problemático, leva a uma dependência muito grande do pequeno produtor.

Sua cadência de produção é dada pela máquina e não pelo trabalhador. Ela possui controles coercitivos que diminuem sua produtividade. A resistência da classe operária (ou o que o patrão chamaria de boicote operário) é algo natural, compreensível e que sempre existiu. Um operário que está sendo explorado numa empresa, num processo de trabalho que o penaliza, vai tentar boicotar a produção. Por isso, a tecnologia capitalista tem que incorporar controles coercitivos para evitar que esse boicote possa ser efetivado, e isso implica num custo de produção maior do que o que ocorreria se ela fosse adequada para a produção auto-gestionária.

A Tecnologia Convencional é também segmentada; e não porque ao sê-lo se torne mais eficiente ou “produtiva”. E sim porque, ao não permitir o controle do produtor direto sobre o processo de trabalho, torna sempre necessário um patrão, um capitalista, um chefe, um capataz, ou, mais modernamente, um engenheiro. Só ele detém o controle sobre a totalidade dos processos de produção, de manutenção, concepção. Seus segmentos sim podem ser operados e parcialmente controlados por conjuntos de trabalhadores. Eles, entretanto, jamais conhecerão outros componentes desses processos.

Ela é também alienante, na medida que não utiliza a potencialidade do produtor direto. Mas a criatividade, a potencialidade do produtor direto que a Tecnologia Convencional inibe pode ser liberada no interior de um empreendimento auto-gestionário.

As características da Tecnologia Convencional são determinadas pelos mercados de alta renda dos paises avançados. O novo conhecimento produzido nesses paises, responsáveis por mais de 95% do que se gasta em pesquisa no mundo, está sempre plasmado, materializado, nas tecnologias que satisfazem o consumo de alta renda. A tecnologia que satisfaz as demandas das classes ricas, dos países ricos é mais moderna; a HiTec.

A HiTec é monopolizada pelas grandes empresas dos países ricos. As 20 empresas que mais gastam em pesquisa no mundo gastam mais do que dois países, que não são Bangladesh e Paraguai, são França e Grã-Bretanha. Essa comparação, o fato que de um lado temos vinte empresas e de outro dois países que são líderes em muitas áreas do conhecimento, nos dá uma idéia de quão monopolizada está a produção de ciência e tecnologia. E conseqüentemente quão absurda é a idéia que a tecnologia é neutra.

As tecnologias que satisfazem o consumo popular, a satisfação de necessidades básicas, as que servem para produzir a infra-estrutura, ou para a agregação de valor às matérias-primas dos países da América Latina, essas tecnologias estão paradas no tempo. Há muito tempo elas não estão sendo renovadas por novo conhecimento2.

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2 Faço um tratamento detalhado deste tema em Dagnino, Renato (2004): A Relação Pesquisa–Produção: em busca de um enfoque alternativo. In Santos, Lucy e outros: Ciência, Tecnologia e Sociedade: o desafio da interação. IAPAR, Londrina, p.103 – 146.

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