Espacios. Espacios. Vol. 30 (2) 2009. Pág. 33


Sobrevivendo à tempestade: o papel do Instituto Nacional de Tecnologia Industrial (Argentina) na assessoria às Fábricas Recuperadas

Surviving to the storm: the paper of the National Institute of Industrial Technology (Argentina) in the assessorship to the Recoupered Plants

Sobreviviendo la tempestad: El papel del Instituto Nacional de Tecnología Industrial (Argentina) en la asesoría a Fábricas recuperadas

Novaes, Henrique T., Serafim, Milena y Dagnino, Renato


O INTI e as tentativas de mudança durante a gestão de Enrique Martinez

No ano de 2007, o INTI completou 50 anos. Ele foi criado na década de 1950 no contexto da política de substituição de importações para atuar como ferramenta de apoio tecnológico às grandes, médias e pequenas empresas, tanto através da prestação de serviços de ensaios, assistência técnica ou capacitação, como da execução de atividades de inovação e desenvolvimento. A sua missão era a “colaboração” público-privada para a melhora da indústria e, assim, da promoção de diversos setores industriais.

A trajetória do INTI apresentou uma inflexão importante a partir da entrada de Enríque Martinez. Historicamente orientado para a prestação de serviços e a transferência tecnológica para a indústria, o Instituto passou também a assessorar de forma sistemática iniciativas de Economia Social.

As causas dessa transformação nos remetem a dois principais fatos. O primeiro deles são os desdobramentos da crise econômica de 2001. Esta desencadeou um processo de destruição e/ou de sucateamento de muitas plantas industriais. A erosão da capacidade produtiva promoveu um quadro de estagnação da produção, aliado ao massivo desemprego, e uma reafirmação dos interesses de parte da classe trabalhadora, que em busca de sobrevivência se materializaram na forma de fábricas recuperadas e cooperativas populares. O cenário de baixa demanda por assessoria tecnológica “padrão” impactou diretamente nas atividades do INTI, estagnando-se juntamente com seu público, e no seu quadro funcional extremamente desestimulado.

O segundo fato, aliado especialmente com o fortalecimento da sobrevivência de parte da classe trabalhadora, diz respeito a entrada de uma nova gestão, orientada a ampliar o escopo do INTI. Este passou a reconhecer a necessidade em assessorar os pequenos, no caso, as organizações produtivas, como fábricas recuperadas e cooperativas populares, que surgiam como um movimento de resistência à crise.

Com a entrada dessa nova gestão, encabeçada por Martinez, o INTI adota quatro consignas, que são: a) construir um Estado mais sólido; b) juntar os pequenos para que sejam mais fortes; 3) criar consumidores livres; 4) maior consciência da população sobre a tecnologia.

Em relação a essas consignas, Martinez em entrevista concedida desenvolveu-as dizendo que o INTI, então, passaria a atuar junto às demandas do Estado, produzindo cadeiras e mesas com novos desenhos, desenvolvimentos de medicamentos com fins públicos, etc. Auxiliando na construção de um “Estado mais sólido” e também na fomentação de consumidores livres.

Além disso, o INTI passaria a dar suporte aos pequenos. Parafraseando e sofisticando o conceito de Schumacher, Martinez disse que lo pequeno e eficiente es hermoso. Para ele, devemos encontrar o genuíno na unidade pequena, podendo a mesma ser uma cooperativa, uma pequena empresa, etc. Resumindo, acredita no pequeno empresário inserido dentro de uma proposta de desenvolvimento local autêntico. Para o presidente, a questão está em defender o local, o bairro e não só o pequeno. Neste momento, a entrevista nos levou a crer que o presidente do INTI guardava alguns princípios anarquistas.

Em outros momentos da entrevista, as palavras do presidente do INTI nos lembraram a obra de Jonathan Swift, na qual os anões do reino de Lilliput conseguem neutralizar o gigante Gulliver. A pergunta que fica é se os anões –, para o nosso caso, pequenos empresários e até mesmo as cooperativas populares, querem derrubar o gigante e, segundo, se há possibilidades de derrubá-los num momento de alta concentração de capital, oligopolização e monopolização da economia. Será que flores podem sobreviver no meio de ervas daninhas?

No sentido dessa nova orientação do INTI, surge uma nova linha de atuação, mais compatível com a realidade sócio-econômica com a qual a Argentina se encontrava, denominada de projetos de extensão de assessoria tecnológica às iniciativas da Economia Social.

Até o ano de 2003, o INTI nunca havia cogitado a idéia de se ocupar do tema da inclusão social por meio da tecnologia. Após longo diálogo com o Ministério de Desenvolvimento Social, o instituto foi incorporado ao plano “manos a la obra” para dar assessoria tecnológica (hardware, orgware e software) às cooperativas e às fábricas recuperadas, bem como, outros empreendimentos produtivos. Essa incorporação do INTI na implementação da política surge uma oferta “forçada” por parte do INTI e não de uma demanda endógena por parte do Ministério.

Martinez, ao realizar um balanço dos quatro anos da parceria, contabiliza êxitos parciais, porque duas barreiras dificultaram a total integração entre os parceiros. A primeira foi a tardia parceria entre INTI e Ministério. O instituto não participou da discussão e do desenho do programa. Apesar dos recursos terem sido suficientes para desenvolver modelos produtivo-tecnológicos, o INTI executou apenas ajustes parciais e não o que entendiam ser importante, que é o apoio tecnológico integral. Tudo isso segundo o presidente do INTI prejudicou um pouco o andamento do programa.

A segunda barreira diz respeito aos técnicos do INTI. Embora a Economia Social fosse muito “bem quista” pelo presidente do Instituto, os assessores dessa instituição a viam com receio, em função do conflito que mencionaremos abaixo entre a predominância da visão da tecnologia de ponta em contraposição a uma guinada para o campo da tecnologia social11.

No início, a restrição ao programa por parte dos técnicos era muito grande. O secretário responsável pela linha de Economia Social, Héctor Gonzalès, tinha que estudar com muito carinho o perfil dos grupos de assessores que deveria designar. Ele disse que era difícil encontrar e escolher aqueles que tinham um maior nível de consciência social, menos avessos aos problemas das cooperativas e fábricas recuperadas.

Atualmente, segundo Martínez, de um total de 500 assessores, 80 são fixos da Economia Social, sem contar as diferentes equipes dos centros do INTI que são acionadas. Contudo, vale ressaltar que muitos dos tecnólogos que trabalham com economia social não compartilham um ideal de transformação social. Para muitos, este trabalho foi imposto.

Durante nossas entrevistas, encontramos dois perfis de engenheiros assessores. Um desses grupos demonstrou preconceito com a classe trabalhadora. Ou seja, trabalhavam muito mais porque pertenciam a uma instituição do Estado, obrigados a prestar um serviço, do que um trabalho com prazer. Mesmo por obrigação, é preciso reconhecer que o processo de assessoria é contraditório, podendo gerar algumas mudanças na conduta destes assessores, como o caso de engenheiros que após um tempo trabalhando com a Economia Social perdeu a resistência em relação ao seu trabalho. O outro grupo de engenheiros se mostrou mais aberto às questões sociais, procurando compreender os problemas sócio-técnicos das fábricas recuperadas.

Apesar dos assessores do INTI ainda não partilharem integralmente da mesma convicção do presidente do INTI em ver a linha de Economia Social como uma de suas prioridades, eles já iniciam um processo de aceitação dessa área. Muito embora essa aceitação ocorra, o INTI esbarra em algumas contradições, como a tensão entre tecnologia de ponta e tecnologia social e o ofertismo tecnológico, que vão de encontro aos princípios da Economia Social. No próximo item desse artigo, exploraremos essas contradições.

Atuais contradições verificadas no INTI

O INTI teve um ponto de inflexão muito importante na sua trajetória ao adotar, como uma das suas linhas de atuação, a Economia Social. Não obstante, o que verificamos na sua atuação é a existência de duas contradições no desenvolvimento dos projetos de extensão da Economia Social. A primeira diz respeito à tensão entre a tecnologia de ponta e a tecnologia social e a segunda, a transferência de tecnologia de forma paternalista (cientista/engenheiro produz tecnologia e depois a cede pronta para o usuário).

A resistência por parte dos tecnólogos e engenheiros do INTI em trabalhar com a Economia Social tem relação com o que Martínez denominou de visão rígida. Esta separa o saber formal (acadêmico) do saber tradicional, e pior, menospreza ou desconhece o valor do saber tradicional. Sendo assim, acreditando nessa separação, muitos engenheiros crêem que trabalhar com a Economia Social é um passo atrás, tanto em termos de prestígio quanto de acúmulo de saber e em conseqüência, de poder. Um dos entrevistados disse que os engenheiros do INTI não gostam de trabalhar para pobres.

O conflito latente entre tecnologia de ponta e tecnologia social pode ser expresso pela pergunta que surgiu, quando se iniciou o programa de Economia Social. Alguns funcionários, demonstrando certa resistência, disseram: “Não vamos mais fazer tecnologia de ponta?”, como nos relatou Martinez.

A recusa em trabalhar com tecnologia social e assim, orientar suas ações por problemas e não por disciplinas, está relacionado ao processo de formação dos engenheiros. Esta formação os moldam a buscar sempre a “melhor” tecnologia, a de ponta, a mais high tech. Mesmo que essa não tenha nenhuma utilidade para o contexto social. A busca é sempre por superar uma tecnologia de ponta já existente. Nesse sentido, além dos engenheiros terem essa restrição em trabalhar com tecnologia social, eles não sabem fazer por não terem sido formados com a preocupação em trabalhar orientado por problema e por demandas de inclusão social. Na cabeça de um engenheiro, as empresas devem acumular capital e devem ser heterogestionárias.

Esta questão está intrinsecamente relacionada à crença de que a ciência e tecnologia (C&T) são assuntos estritamente técnicos e apolíticos. Ou seja, de que C&T são neutras e apresentam uma lógica inexorável de desenvolvimento. Sendo assim, trazer a discussão da tecnologia social é refutar esta crença e, mais que isso, é discutir questões de classe e politizar o artefato tecnológico e é rejeitar a transferência paternalista de tecnologia, isto é, a forma como a tecnologia é construída (afastada da realidade e aplicada pelos donos do saber).

A respeito dessa transferência, nossa segunda contradição, é válido afirmar que essa se manifesta com extraordinária força dentro do INTI. Isso pôde ser percebido não só durante as entrevistas, nas quais os assessores mencionaram inúmeras vezes as palavras transferência de tecnologia, mas também nos documentos do INTI e nos relatos das assessorias técnicas.

Entendemos como transferência a prática de construir conhecimento sem a participação do seu usuário direto, ou seja, a prática em que a instituição constrói isoladamente conhecimento e depois a repassa para o grupo que vai utilizá-lo. Essa oferta de conhecimento, no caso, vira uma contradição ao ser uma prática usual às iniciativas de Economia Social. Isso porque estas têm como fundamento um de seus fundamentos a construção coletiva do conhecimento e sua gestão compartilhada.

Podemos trazer como hipótese que essas contradições são fundadas na concepção da neutralidade da ciência e da tecnologia De acordo com essa concepção, a ciência e a tecnologia seriam livres de quaisquer tipos de valores e de interesses (econômicos, políticos, culturais, sociais, etc.). E, conseqüentemente, nesta concepção está implícita a idéia de que todo e qualquer tipo de C&T e de assessor servirá a uma sociedade mais justa e democrática e aos interesses das classes dominadas12.

Considerações Finais

Este artigo buscou analisar as ações do INTI na gestão do presidente Henrique Martinez. Focamos nossa atenção na adoção de projetos de extensão tecnológica da área de Economia Social, a qual reflete uma mudança significativa na trajetória do INTI como um instituto cujo objetivo sempre foi assessorar empresas privadas. E, além disso, trabalhar no desenvolvimento de tecnologias de ponta, algo bastante distinto do que demanda as Economia Social. Ao criar essa linha de atuação, o INTI incorpora um novo público como alvo de prestação de serviços: as fábricas recuperadas e cooperativas populares que, após a crise de 2001, se tornam cada vez mais presentes no cenário político argentino.

Apesar de reconhecermos que o simples fato do INTI inserir o componente tecnológico na política de geração de trabalho e renda argentina é um avanço, identificamos que essa incorporação surgiu muito mais de uma iniciativa de seu presidente do que de uma demanda dos formuladores da política “manos a la obra”. Ao mesmo tempo, surgiu da pressão dos movimentos sociais que necessitavam do apoio de algumas instituições públicas.

Percebemos, por outra parte, a partir de entrevistas que realizamos, contradições no desenvolvimento dos projetos de extensão à Economia Social. As quais orientam esses projetos numa direção contrária a dos preceitos da Economia Social.

Essas contradições, que percebemos como a busca pela melhor tecnologia (tecnologia de ponta) e a transferência paternalista de tecnologia, inibem a adoção de um enfoque tecnológico para inclusão social na macro-política do “manos a la obra”, comprometendo a consecução de suas metas, sobretudo, a de inclusão social.

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11 A tecnologia social pode ser definida por oposição à tecnologia convencional, desenvolvida pela e para grande corporação capitalista, heterogestionária, acumuladora de capital e produtora de mercadorias. Deste ponto de vista, a tecnologia social é aquela que se baseia num processo de Adequação Sócio-Técnica tendo em vista a produção de valores de uso, a autogestão em cooperativas e associações de trabalhadores. Ver Dagnino, Brandão e Novaes (2004).
12 Sobre isso, ver Dagnino e Novaes (2007) e Novaes (2007b).

Vol. 30 (2) 2009
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