Espacios. Vol. 36 (Nº 21) Año 2015. Pág. 14

Nova dinâmica produtiva e velhas questões territoriais nos cerrados setentrionais do Brasil

New productive dynamics and old territorial issues in the northern cerrados from Brazil

Antonio Joaquim da SILVA 1; Maria do Socorro Lira MONTEIRO 2; Eriosvaldo Lima BARBOSA 3

Recibido: 07/07/15 • Aprobado: 13/08/2015


Contenido

1. Introdução

2. Metodologia

3. Fatores determinantes para a instalação do agronegócio no cerrado

4. O agronegócio nos cerrados do Norte/Nordeste e a criação do Matopiba

5. Considerações Finais

Referências


RESUMO:

Este artigo pretende analisar a dinâmica da incorporação do cerrado brasileiro, em particular, das regiões Norte e Nordeste, no circuito do agronegócio granífero. Para tanto, embasa-se numa investigação descritiva, por meio de pesquisa bibliográfica em livros e periódicos científicos e pesquisa documental em sites de órgãos públicos que tratam do tema. Após a revisão, conclui-se que a expansão do agronegócio nos cerrados se deve à ordem político/ideológica conduzida pelo Estado em valorizar o capital, pois tem arquitetado benesses inexoráveis para os grupos dominantes do setor agropecuário, o que tem repercutido no redimensionamento do território, como a institucionalização do Matopiba, por exemplo.
Palavras-chave: Agronegócio, Cerrados, Gerais, Matopiba.

ABSTRACT:

This article aims to analyze the dynamics of the incorporation of the Brazilian cerrado, in particular, the cerrado of the North and Northeast regions of Brazil, into the circuit grain production agrobusiness. Therefore, it is based on a descriptive research through literature search in scientific books, periodicals and documentary research on public agencies sites which are related to this theme. After the review, it was concluded that the expansion of the agrobusiness in the cerrado is due to the political / ideological order conducted by the State in order to get capital appreciation because it has devised inexorable benefits to the dominant groups of the agricultural field, which has impacted the resizing of the territory, as the institutionalization of "Matopiba", for instance.
Keywords: Agribusiness, Cerrado, Gerais, Matopiba

1. Introdução

O agronegócio tem se destacado como um setor ativo da economia, principalmente, no Brasil. Tal conformação sublinha que em 2014 o agronegócio respondeu por US$ 96,75 bilhões das exportações agropecuárias, cujo superávit na balança comercial se apresentou positivo, com US$ 80,13 bilhões. Destarte, a produção grãos/carnes desempenhou papel importante nesse cenário, na medida em que os complexos da soja e de carnes representaram US$ 48,83 bilhões, ou seja, somaram 50,4% das vendas internacionais (BRASIL, 2015a).

Por outro lado, de acordo com Silva, Monteiro e Barbosa (2015, p.50-53), o agronegócio manifesta "um projeto sociopolítico formulado pelos interesses do Estado e de grupos hegemônicos do capitalismo agrário, comandado pelo mercado financeiro internacional". Portanto, assinalam que devido a seu caráter político/ideológico, o agronegócio "reclama o controle dos mercados e a apropriação e o domínio dos territórios, que inclui os bens ambientais e os sujeitos".

Nesse contexto, salienta-se que a partir da década de 1970 o agronegócio passou a ocupar o bioma cerrado – savana tropical com presença de maior biodiversidade do mundo, e a segunda maior formação vegetal do Brasil (MUELLER; MARTHA JÚNIOR, 2008), com fins de reproduzir o capital através da produção grãos/carnes, o que provocou a alteração da paisagem e, ao mesmo tempo, introduziu novas relações de trabalho; reorganizou a produção agropecuária e interferiu nos modos de vida da população local.

Nesse sentido, faz-se necessário questionar tal projeto sociopolítico, na medida em que a ocupação dos cerrados traz também um imperativo de rugosidades, termo definido por Santos (2009, p.141) como formas isoladas ou como arranjos, isto é, as rugosidades simbolizam "ao que fica do passado como forma, espaço construído, paisagem, o que resta do processo de supressão, acumulação, superposição, com que as coisas se substituem e acumulam em todos os lugares". Então, indaga-se que fatores determinaram a expansão do agronegócio nos cerrados brasileiros, a partir da década de 1970? Também, faz-se mister refletir sobre as consequências desse panorama para a continuidade da agricultura familiar (sistema de produção que antecede o agronegócio nas várias regiões do país) e para a preservação do bioma.

Assim, sob a ótica das transformações socioprodutivas ocasionadas na agropecuária brasileira, este artigo pretende analisar as rugosidades do processo de ocupação dos cerrados, pelo agronegócio, sobretudo a incorporação das regiões Norte e Nordeste. Para tanto, está divido em cinco seções, além da introdução. A próxima apresenta a metodologia utilizada na construção da pesquisa; a terceira contextualiza a marcha do agronegócio nos cerrados do Planalto Central, referenciando o papel do Estado e os aspectos geoambientais que viabilizaram a ocupação do bioma; a quarta versa sobre a expansão do agronegócio para os cerrados Norte/Nordeste, enfatizando os contrapontos desse cenário para a continuidade da agricultura familiar e a preservação dos recursos naturais, além disso, trata do Matopiba, território recentemente instituído pelo Governo Federal para designar as áreas de alta produtividade agropecuária localizadas nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia (genericamente reconhecida como a nova fronteira agrícola brasileira); por fim, são feitas algumas considerações finais.

2. Metodologia

Este artigo tem caráter descritivo, por isso, embasa-se em pesquisas bibliográfica e documental, que de acordo com Santos (2012), constituem fontes confiáveis para a compreensão de fenômenos, fatos e variáveis sobre determinada realidade. Dessa forma, fundamenta-se em interpretações de livros, periódicos científicos e documentos oriundos de instituições públicas que abordam a temática sobre o desenvolvimento do agronegócio no cerrado, sendo destacáveis o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

3. Fatores determinantes para a instalação do agronegócio no cerrado

A palavra agronegócio ou agribusiness é originária dos Estados Unidos da América, na década de 1950, quando John Davis e Ray Goldberg, professores da Harvard Business School, organizaram os três setores da economia segundo um sistema agroindustrial. Nessa perspectiva, definiram o agronegócio "a soma de todas as operações de processamento e distribuição de insumos agropecuários, as atividades de cultivo e colheita nas unidades agrícolas; e o armazenamento, o beneficiamento e a distribuição dos produtos agrícolas e itens produzidos a partir deles" (SILVA, 1998 apud SILVA; MONTEIRO; BARBOSA, 2015, p.48).

Já para Antonello (2011), o agronegócio consiste na integração externa da economia rural, por protagonizar a unificação de capitais agroindustriais, financeiros e agrários.

Por outro lado, para Silva, Monteiro e Barbosa (2015, p.53), o agronegócio significa "um projeto político/ideológico do Estado e de um pequeno grupo de capitalistas, validado pela defesa da manutenção da grande lavoura capitalista, que fundamenta suas práticas na racionalidade da agricultura científica", que vem se consolidando, principalmente no Brasil, através da potencialização do capital, sobretudo por meio da produção grãos/carnes.

Por conseguinte, a introdução do agronegócio no Brasil data das mudanças nos padrões de produção agropecuária ocorridas na segunda metade do século XX, quando se intensificaram a internalização da indústria de insumos modernos, de máquinas e equipamentos que, conforme Silva, Monteiro e Barbosa (2015, p.50), consequentemente, difundiram a decomposição do complexo rural, que se caracterizava pela "dependência das flutuações do mercado externo e pelo uso de tecnologia agrícola bastante rudimentar em praticamente todas as regiões, exceto Sudeste e Sul".

Em virtude desse panorama, os referidos autores destacam o II Plano Nacional de Desenvolvimento ou II PND, proposto pelo Governo Federal como instrumento preponderante à instalação do agronegócio no país.

Diante disso, Aguiar e Monteiro (2006) ressaltam que a modernização e a criação de mecanismos subvencionadores como crédito bancário (preconizado através do Sistema Nacional de Crédito Rural - SNCR), Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM), abertura comercial, incentivos fiscais e investimentos em pesquisas científicas, foram condições sine qua non para a consolidação dos chamados Complexos Agroindustriais (CAIs) responsáveis por assegurar a oferta de matérias-primas estratégicas (defensivos, tratores, fertilizantes, sementes, etc.).  

No âmago desse cenário, salienta-se que a partir da década 1970 se inicia o movimento de expansão e modernização da fronteira agrícola, entendida como lugar de conflitos e de limites históricos (MARTINS, 2014), cuja conversão do cerrado ao processo produtivo de grãos e carnes se orientou por meio da dinâmica do mercado mundial.

Sem embargo, o agronegócio granífero protagonizado pela soja, que até então ocupava os estados das regiões Sul e Sudeste (cabendo ao Rio Grande do Sul o pioneirismo do cultivo, no final da década de 1950), irradia-se para o Planalto Central e, posteriormente, para as regiões Norte e Nordeste, favorecendo as práticas de novos agentes e acirrando as tensões sociais (BERNARDES, 2009).

Segundo Matos e Pessôa (2011), a expansão do agronegócio para o cerrado foi promovida através de políticas exclusivas, como o Programa de Desenvolvimento dos Cerrados (Polocentro) e o Programa de Cooperação Nipo-Brasileira de Desenvolvimento Agrícola da Região do Cerrado (Prodecer). O Polocentro, criado em 1975, visava anexar áreas do bioma aos Complexos Agroindustriais por meio de benefícios (crédito agrícola) e vantagens (preço das terras). Para tanto, foram escolhidas áreas nos estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso. Além disso, as áreas selecionadas já possuíam pré-requisitos considerados básicos à ocupação (alguma infraestrutura, estradas vicinais, eletrificação, proximidade com minas de calcário e potencial agrícola favorável), sendo classificadas, portanto, como "prioritárias" ou secundárias", com isso, recebiam investimentos em fixos e fluxos.

Já o Prodecer, assinado em 1974, entre o governo brasileiro e o japonês, consistia um acordo para ocupar e explorar as terras do cerrado sob sistemas de cooperativas conduzidas pela Companhia de Promoção Agrícola (Campo), uma empresa multinacional administrada através de duas holdings, a Companhia Brasileira de Participação Agrícola (Basagro) e Japan-Brazil Agricultural Development Corporation (Jadeco). 

Além desses, assinala-se que as características ambientais do cerrado, como topografia, o clima e o solo, não impediram o processo de ocupação do bioma, pois se demonstraram favoráveis à instalação do novo modus operandi. Logo, para Peixinho e Scopel (2009), o incremento da mecanização nos cerrados foi potencializado em razão do relevo plano e/ou suavemente ondulado, das diferentes condições de luminosidade, temperatura e pluviosidade, e da correção dos solos (com a aplicação de calcários agrícolas, visando reduzir a acidez e repor nutrientes, como cálcio e magnésio). Constatam, ainda, o uso de sementes melhoradas, o controle de pragas e doenças, e a profissionalização do produtor.

Outro fator determinante para a fixação do agronegócio nos cerrados foi o papel desempenhado pelo Estado em desenvolver ideologicamente a ocupação dos espaços ditos "vazios", os quais apresentavam, historicamente, povoamento rarefeito, notadamente no Centro-Oeste. Por conta disso, Bernardes (2009) assegura que em razão da pouca objeção das populações nativas, as ações de territorialização da agricultura se estruturaram. Logo, salienta que a ótica expansionista do Governo Federal propunha estabelecer um novo tipo de agricultor, o qual pudesse reunir em torno de si os atributos da almejada agricultura moderna. Tal ordenação só seria viável mediante o binômio governo/iniciativa privada, e dos investimentos em energia, transporte e comunicação.

Com base nesse panorama, ressalta-se que a incorporação do cerrado para o agronegócio foi financiado pela política governamental, como créditos subsidiados, infraestrutura (operacional, técnica e logística), regulação econômica e facilidade para a ocupação de terra. Dessa maneira, promoveu a competitividade nos mercados internacionais, como meio para assegurar saldos crescentes na balança comercial, visando manter estáveis as dívidas com credores externos.

É nesse contexto que o agronegócio ocupou os cerrados do Planalto Central, desencadeando uma nova lógica produtiva assentada na economia em escala. Após a década de 1970, o agronegócio se direciona para as regiões Norte e Nordeste, particularmente para os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.

Esses estados englobam o Matopiba (Figura 1), território batizado pelo Governo Federal e pelos defensores do agronegócio como 'a nova fronteira agrícola brasileira', instituída sob o Decreto nº 8.477, de 6 de maio de 2015 (BRASIL, 2015b).

Figura 1: Localização espacial do Matopiba

MATOPIBA_CORRIGIDO

Fonte: Elaboração própria

4. O agronegócio nos cerrados do Norte/Nordeste e a criação do Matopiba

Conforme Alves (2009, p.152-153), as condições geográficas dos cerrados nordestinos expressam a existência de singularidades socioespaciais em relação ao conjunto da região Nordeste. Essas particularidades dizem respeito às formas físico-geográficas e às características da ocupação humana. Logo, encerra que:

No primeiro caso, predominam chapadões planos recobertos de vegetação de cerrado, cuja extensão nos limites administrativos da região inclui o oeste da Bahia, o sudoeste do Piauí e o sul do Maranhão. Os cerrados nordestinos representam, entretanto, apenas um fragmento dessa unidade ecológica cujo prolongamento acompanha vastas áreas de todos os estados do Brasil Central e partes das terras de Minas Gerais e São Paulo. [...] As primeiras formas de ocupação dos cerrados nordestinos se caracterizam pelo extrativismo vegetal, a agricultura camponesa e a pecuária extensiva, atividades que contribuíram para construir historicamente os contornos regionais, modificados atualmente pela instalação da agricultura moderna.

Haesbaert (2005) chama esses espaços de "novo Nordeste", por consistirem num núcleo de atração de investimentos público/privados, sendo assim, constata que o "novo Nordeste" configura uma nova divisão territorial do trabalho, ditada pela modernização seletiva da agricultura e monopolizada por grupos agroempresariais (tradings do setor agropecuário).

Nesse sentido, sublinha-se o oeste baiano como área central da presença do agronegócio granífero no Nordeste, com destaque para os municípios São Desidério, Barreiras e Luís Eduardo Magalhães, cuja intensa produção agrícola possibilitou a incorporação de empreendimentos privados do ramo de esmagamento e processamento de grãos, como a Bunge Alimentos S.A. e a Cargill Agrícola S.A.; além de cooperativas agrícolas e empresas de comércio e de prestação de serviços especializados para o setor.

Alves (2009, p.159) comenta que as ações governamentais, como infraestrutura viária e portuária, crédito subsidiado e incentivo em pesquisas, além do baixo preço da terra, foram condição sine qua non para a corrente migratória de sulistas (genericamente, representam os migrantes originários do sul do Brasil) para os cerrados baianos, iniciada em 1970, mas intensificada entre 1980 e 1990. Consequentemente, tais atores foram os principais responsáveis pela modernização das lavouras temporárias nesse estado.

No Maranhão, especificamente nas terras do Sul (onde se destaca o município de Balsas – marco inicial da modernização dos cerrados maranhenses), o agronegócio aportou em 1974, com os migrantes sulistas. Coube à Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), por meio de programas de desenvolvimento regional, o papel de introduzir o agronegócio no estado, cujas linhas de créditos estavam associadas à pecuária melhorada e à rizicultura (ALVES, 2009).

Todavia, constata-se que o agronegócio se consolida naquele estado a partir de 1991, por meio dos estudos realizados pelo convênio de cooperação técnica e financeira entre a Embrapa e instituições financeiras como o Banco do Brasil, o Banco do Nordeste do Brasil, o Banco da Amazônia S.A. e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), além de empresas como a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). Os resultados do Convênio visavam a criação do Programa Corredores de Exportação Norte, cuja meta conciliava a proximidade das áreas produtoras de matérias-primas com a possibilidade de escoar a produção agropecuária para os mercados doméstico e global, esse último por meio dos portos de Itaqui e Ponta da Madeira em São Luís.

Entretanto, para Alves (2009), tal incorporação não repercutiu em mudanças nas estruturas de desigualdades sociais, na medida em que se acentuaram as contradições socioespaciais (concentração da posse da terra, baixa qualidade de vida nas comunidades rurais, pequena produtividade da agricultura familiar, êxodo rural).

No Tocantins, o agronegócio data da década de 1990, com as lavouras de arroz sequeiro. O interesse dos grupos econômicos do setor agropecuário pelos cerrados tocantinenses se justifica pela localização estratégica, pois estão situados na porção central do país, limitando-se com outros centros produtores nas regiões Norte, Centro-Oeste, Nordeste e Sudeste; e por possuírem bacias hidrográficas importantes (rios Tocantins e Araguaia). Contudo, para Bernardes (2009), essas vantagens espaciais repercutiram diretamente no preço da terra, cujos valores são relativamente altos quando comparados aos lugares de ocupação antiga.

Mas para Aguiar et al. (2013), é exatamente o preço da terra o elemento de maior atração do agronegócio nos cerrados tocantinenses, haja vista que o valor médio por hectare custa R$ 6.100,00, inclusive, nas áreas de alta produtividade computa R$ 10.300,00/ha. Confirma tal posição ao comparar os preços médios da terra de outros lugares, por exemplo, Ribeirão Preto-SP (R$ 27.300,00/ha), Noroeste do Rio Grande do Sul (R$ 26.900,00/ha) e Dourados-MS (R$ 18.000,00/ha).

Segundo Bernardes (2009), outro determinante para a ocupação dos cerrados tocantinenses diz respeito ao escoamento da produção agrícola, sendo transportada em rodovias intermodais (BR-230, BR-010 e BR-153); em ferrovias, como a Estrada de Ferro Carajás (EFC) e Ferrovia Norte/Sul (FNS); e exportada através dos complexos portuários de Itaqui e Ponta da Madeira.

Piauí não se distingue dos demais estados onde o agronegócio desembarcou, posto o papel desempenhado pelas políticas públicas e as características naturais. Assim, para Alves (2014), os recursos direcionados pelo Programa de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e do Nordeste (Polonordeste), com fins de modernizar a produção agropecuária, beneficiaram sobremaneira a camada de médios e grandes proprietários rurais, supostamente em condições de os tornarem autossuficientes para atender as metas de crescimento econômico vigentes na época.

Peixinho e Scopel (2009, p.103) acrescentam, também, na década de 1970, os incentivos fiscais do Fundo de Investimento do Nordeste (Finor-Agropecuário), que cumpriria o objetivo de sustentar o desenvolvimento agropecuário (com aquisição e melhoramento de rebanhos, cultivo de pastagens, formação de áreas de extrativismo, etc.) e do Fundo de Investimento Setorial (Fiset), que possibilitaria a exploração florestal (principalmente caju). Tais programas foram os principais responsáveis para a colonização e exploração do cerrado piauiense pelo agronegócio.

Todavia, os resultados daqueles incentivos não foram satisfatórios, uma vez que tanto os projetos agropecuários como as plantações de caju foram substituídos por lavouras modernas. Para Aguiar e Monteiro (2006, p.212), isso agravou a concentração fundiária, pois as terras eram negociadas via Companhia de Desenvolvimento do Piauí (Comdepi), a preços insignificantes ou ditos "simbólicos", "possibilitando a constituição e dinamização do mercado de terras" no estado. Nessa perspectiva, ressaltam que não obstante a inserção da ocupação e uso do cerrado piauiense ter iniciado na década de 1970, através de subsídios do Finor-Agropecuário e do Fiset, somente a partir da década de 1990 ocorreu a intensificação da instalação de grandes empreendimentos produtores de grãos, em particular, soja, atraídos, sobretudo, pelo baixo preço da terra, pelo esgotamento de solos agricultáveis em outras regiões do país, pela proximidade dos mercados consumidores e pelos recursos facilitados dos governos federal e estadual.

Peixinho e Scopel (2009) relatam que o fato de essas políticas induzirem à territorialização dos cerrados, não significa que tal frente de expansão capitalista abandone a prática da seletividade espacial, pois dos 11,5 milhões de hectares de cerrado piauiense, as áreas que de fato foram (e estão sendo) incorporadas para a produção de grãos são aquelas cujo modelo técnico produtivo exige características particulares, como por exemplo, as áreas de platôs ou chapadas (denominados localmente de Gerais), onde o relevo é plano e/ou suavemente ondulado, os solos são de textura média/argilosa e o clima apresenta temperaturas mais amenas e distribuição pluviométrica regular.

De fato, os Gerais eram pouco aproveitados pelos nativos, já que representavam para as famílias camponesas os lugares de uso comum, ou seja, as áreas de reservas naturais onde se soltava o gado para o proveito da pastagem (em determinadas épocas do ano), ou serviam de lugar de extrativismo vegetal (lenha, frutos e plantas medicinais) e de caça de animais silvestres. Portanto, os Gerais designavam as terras devolutas, isto é, terras ociosas e não cercadas, que constituíam extensos descampados de matas de cerrados.

Ademais, Peixinho e Scopel (2009, p.111) constatam que a retirada da vegetação dos Gerais "não só produziu um grande impacto ambiental, mas, sobretudo, comprometeu o modo de vida dessa população".

Assim, a nova organização socioespacial dos cerrados setentrionais se sustenta na lógica de valorização do capital. Nessa perspectiva, salienta-se que os sistemas técnicos se tornaram parte integrante da paisagem local, expressando novos tempos no cotidiano das comunidades rurais (e da população urbana), com isso, o sentido de tempo imposto pelo agronegócio se calca na produção mercantil, ou seja, num tempo cujo ritmo é orientado por:

[...] máquinas agrícolas fiscalizadas por satélites; grandes galpões capazes de armazenar milhares de toneladas de grãos monitorados sob rígido controle de qualidade; escritórios controlando em tempo real o preço das commodities nas principais bolsas mundiais; unidades de recebimento de grãos das grandes empresas instaladas em pontos estratégicos, e próximo delas um movimento intenso de caminhões despejando ou retirando produtos para as fábricas esmagadoras ou para os portos exportadores (ALVES, 2009, p.168).

Contraditoriamente, a introdução do agronegócio nos cerrados Norte/Nordeste não resolveu os impactos sociais gerados pela modernização, já que para Bernardes (2009), em função do nível técnico aplicado, o agronegócio pouco emprega; desse modo, reduz as possibilidades de trabalho em termos quantitativos, utilizando, quando necessário, formas de trabalho de menor qualificação, difundindo, então, os vínculos de contratos temporários e mal remunerados. Nesses trâmites, evidencia que os agricultores familiares de culturas tradicionais de consumo local e regional têm pouca chance de inserção no agronegócio, acentuando-se, nesse contexto, os problemas sociais, como a concentração da terra.

Como exemplo axiomático desse quadro, Aguiar et al. (2013) realçam o agravamento da questão agrária no Piauí, onde o preço médio da terra, principalmente na Mesorregião Sudoeste, computa R$ 5.800,00/ha, com valores máximos de R$ 8.000,00/ha para as áreas de alta produtividade. Ou seja, o cerrado piauiense se transformou num ativo de alta liquidez, na medida em que o preço da terra é menor quando comparado às outras regiões, por exemplo, o oeste baiano, o triângulo mineiro e o planalto mato-grossense, onde o valor médio da terra é negociado por R$ 6.600,00/ha, R$ 21.800,00/ha e R$ 12.400,00/ha, respectivamente.

Por outro lado, em razão do bom desempenho granífero dos cerrados Norte/Nordeste, o Governo Federal denominou o território do Matopiba (Figura 1), cuja finalidade visa promover e coordenar políticas públicas voltadas para o desenvolvimento agropecuário dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.

Destaca-se que o Matopiba apresenta área territorial de 73.173.845ha, disposta em 337 municípios, cuja população, em 2010, era de 5.901.789 habitantes. Ademais, o Matopiba possui PIB per capita de R$ 7.594,00, seguramente, devido à alta produtividade de grãos, sobretudo soja, pois em 2014, respondeu por 8,3% da safra brasileira (IBGE, 2010 e 2015).

De acordo com Brasil (2015b, p.2), a institucionalização do Matopiba objetiva:

I - desenvolvimento e aumento da eficiência da infraestrutura logística relativa às atividades agrícolas e pecuárias; II - apoio à inovação e ao desenvolvimento tecnológico voltados às atividades agrícolas e pecuárias; e III - ampliação e fortalecimento da classe média no setor rural, por meio da implementação de instrumentos de mobilidade social que promovam a melhoria da renda, do emprego e da qualificação profissional de produtores rurais.

Porém, em consonância com Peixinho e Scopel (2009), nota-se que a proposta estatal para a potencialização do Matopiba se centra no estabelecimento de um tipo moderno de produtor rural, personificado à luz da lógica empresarial, uma vez que a agricultura familiar não se faz presente no documento que cria o Matopiba.

Dessa maneira, sustenta-se a opinião de que o Matopiba denota uma estratégia política/ideológica do Estado e das classes dominantes do agronegócio (que inclui as multinacionais do capital agrário e produtores rurais bem capitalizados) e, ao mesmo tempo, propõe a competitividade dos cerrados nos mercados doméstico e global.

Nessa perspectiva, afirma-se que a estruturação do Matopiba não nega o passado de domínio e apropriação do cerrado, tampouco o conjunto de instrumentos de natureza institucional benéficas à consolidação do agronegócio, posto que sua institucionalização faz parte do processo de desenvolvimento do capital no rural.

5. Considerações Finais

A difusão do agronegócio no cerrado manifesta uma realidade 'perversa e contraditória' da história agrária do país, na medida em que a ocupação do bioma tem provocado profundos descompassos, sobretudo a acentuação dos conflitos sociais (concentração e mercantilização da terra), o êxodo rural, segregação espacial do urbano, a pobreza e exclusão do agricultor familiar, seletividade socioespacial do trabalho e a degradação dos recursos naturais.

Especificamente nos cerrados do Norte e Nordeste, a operacionalização do território Matopiba segue as mesmas características das outras cidades antes apropriadas pelo agronegócio (no Centro-Oeste, por exemplo), posto que as políticas públicas têm sustentado a construção de uma tipologia de produtor rural dito moderno e competitivo. Isso se verifica nas benesses como incentivos fiscais, estímulos à pesquisa científica, disponibilidade de infraestrutura e facilidade de acesso às terras. Dessa forma, o agronegócio tem avançado sob as terras de uso comum, causando incertezas sobre a continuidade dos modos de vida rurais e a preservação das identidades territoriais.

Constata-se que as transformações em curso no cerrado, notadamente, iniciadas na década de 1970, quando o agronegócio se irradia das regiões Sul e Sudeste para os outros estados, despontam um contexto de organização, desorganização e reorganização dos territórios, cujo único objetivo visa a reprodução ampliada do capital. Portanto, conclui-se que a marcha do agronegócio no Brasil encerra distintos processos de redimensionamento do território, pois revela a complexidade das relações de poder inscritas na posse e uso dos recursos naturais e culturais.

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1. Doutorando em Desenvolvimento e Meio Ambiente/UFPI, professor do IFPI/Campus Teresina Central, e-mail: antoniojoaquim@ifpi.edu.br
2. Doutora em Economia Aplicada (Unicamp), professora do Departamento de Ciências Econômicas/UFPI, e-mail: socorrolira@uol.com.br
Doutor em Cultura e Sociedade (UFBA), professor do Departamento de Planejamento e Política Agrícola/UFPI, e-mail: eriosvaldobarbosa@hotmail.com


Vol. 36 (Nº 21) Año 2015

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