ISSN 0798 1015

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Vol. 38 (Nº 03) Año 2017. Pág. 4

Comunidade: a busca de um conceito

Community: the search of a concept

Artur LAZZARI 1; Jane M. MAZZARINO 2; Luciana TURATTI 3

Recibido: 02/08/16 • Aprobado: 12/09/2016


Conteúdo

1. Introdução

2. Aspectos históricos

3. Da comunidade à sociedade: aspectos sociológicos

4. Elementos conceituais

5. Dimensões ética e estética da comunidade

6. Uma proposta a partir da impossibilidade

Referências


RESUMO:

A crescente complexidade em torno das relações humanas impõe a necessidade de estudos científicos sobre as relações da sociedade com temas que assumem importância cada vez maior na vida humana. É neste contexto que se insere o objetivo deste artigo, de firmar os pressupostos teóricos sobre o conceito de comunidade, a fim de apontar elementos para sua construção em tempos marcados pelo uso exacerbado do termo, muitas vezes, com sentido esvaziado. Primeiramente, serão exploradas as dimensões histórica, sociológica, ética, estética e simbólica do conceito. Então se buscará sintetizar os elementos que se mostrem pertinentes na atualidade, de modo que possam subsidiar discussões sobre a comunidade em contextos socioculturais diferenciados. O método empregado é qualitativo de base bibliográfica. Como resultado propõem-se um modo de pensar a comunidade nos tempos contemporâneos.
Palavras-chave: Comunidade; Conceito; Estudo qualitativo; Pesquisa bibliográfica; Evolução histórica.

ABSTRACT:

The growing complexity around the human relations imposes the necessity of scientific studies on the society relations with subjects that assume increasingly importance on human life. It is in this context that this article objective is insert, which is to firm the theoretical assumption on the concept of community, in order to point elements to its construction in times marked by the overuse of the term, often, with an emptying meaning. First, will be explored the historical, sociological, ethics, aesthetics and symbolic dimensions of the concept. Then it will be pursued to synthesize the elements that shows relevant today, in order to afford discussions on community in different sociocultural contexts. The method applied is qualitative on bibliographic basis. As outcome it is proposed a manner to think the community on contemporary times.
Keywords: Community; Concept; Qualitative study; Bibliographic research; Historical evolution.

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1. Introdução4

Talvez por nunca ter realmente se concretizado da forma como esperavam os teóricos dos ideais comunistas, ou até mesmo por representar uma organicidade cálida que reúne seus membros em uma harmonia de desejos para a busca por um bem que sempre é comum, é que o tema da comunidade periodicamente retorna aos discursos atuais e gera questionamentos quanto a sua aplicação. Ou, ainda, devido à constatação de que o indivíduo liberal ruma para o seu próprio esgotamento, e que a convivência em novos espaços coletivos apresenta-se tanto como uma alternativa política e social, como um desafio diante dos processos interculturais, que explicitam fortemente homogeneidades e diferenças.

As ideias de comunidade ou do comunitarismo tornam-se ainda mais importantes num momento em que a figura do Estado cada vez menos consegue dar conta das demandas tão diversas geradas pela sociedade em um mundo globalizado. Assim, pretende-se, por meio do método bibliográfico, abordar a temática comunitária, englobando uma concepção contemporânea de ser humano. A discussão aqui proposta tem o condão de firmar os pressupostos teóricos que perpassam o termo comunidade, para, ao final, extrair destes, elementos que possam contribuir para a construção de um conceito que vá além das meras utopias e que seja tangível na compreensão de diferentes realidades socioculturais.

Primeiramente, serão exploradas as dimensões histórica, sociológica, ética, estética e simbólica do conceito. Então se buscará sintetizar os elementos que se mostrem pertinentes na atualidade, de modo que possam subsidiar discussões sobre a comunidade em contextos socioculturais diferenciados.

2. Aspectos históricos

As ideias de comunidade e comunitarismo são conceitos entrelaçados que tomaram força a partir do desenvolvimento da sociedade moderna, sendo explorados pelas mais diversas vertentes. Schmidt (2013) destaca a elasticidade do termo comunidade é tamanha, que este tem sido utilizado tanto em projetos conservadores como em revolucionários, democráticos e totalitários, de esquerda e de direita. Assim, abrange controversos pontos de vista e dissonantes discursos.

Salienta-se, primeiramente, a percepção sociológica da comunidade como a primeira forma de agrupamento humano, na qual cada ente desempenhava sua função como parte de um organismo compreendido como harmônico e uno em si. Talvez um dos fatores mais atraentes da comunidade fosse libertar a pessoa da “assustadora” responsabilidade de determinar sua própria vida, apesar disso engessar a livre autonomia individual já que a função é definida a priori pela comunidade e coloca-se como superior à existência do ser.

Posteriormente, a comunidade terá como fator primordial a comunhão de sentidos. A evolução dessa concepção com o acirramento das diferenças culturais e políticas determinará a formação dos estados nacionais e suas devidas fronteiras geopolíticas.

Yamamoto concorda que no período seguinte à formação dos Estados nacionais, através do projeto iluminista, o signo da comunidade foi empregado em sua acepção negativa.

[...] com o objetivo de dissolver os grupos sociais primitivos (clãs, tribos, etc.), em favor da construção da sociedade moderna (cujas melhorias supostamente se estenderiam ao todo social). […] Nesse período histórico, comunidade designava a barbárie, o atraso, a guerra de todos contra todos (Yamamoto, 2007, p. 6).

Esta noção de atraso refere-se ao período em que os Estados buscavam se desenvolver com uma formatação unitária, para legitimar sua dominação sobre grupos estabelecidos em seu território. Objetivava-se que estes agrupamentos ditos tribais, primitivos ou comunitários, pudessem chegar às “luzes do iluminismo”, transformando-se naquilo que representaria a noção de sociedade, colocada como oposta à comunidade e que impulsionaria o projeto industrial europeu.

Porém, o ideal iluminista gradualmente perderia sua força em decorrência da negação da tradição e, em contrapartida, o “retorno” dos ideais acerca da comunidade – sobretudo a partir do final do séc. XIX e início do séc. XX – emerge com a ideia de libertação do homem relacionada à valorização das suas origens. Esta proposta vai subsidiar os ideais comunistas focados na visão de uma comunidade igualitária e utópica.

Percebe-se que a clássica oposição entre comunismo e liberalismo é algo que antecede a formação desses ideais, possuindo suas raízes na luta entre ideais evolucionários iluministas e as rudimentares concepções de comunidade.

Bauman expõe algumas tentativas de introduzir esse sentimento comunitário em meio às obras capitais da indústria do século XIX, como o intuito de fazer com que os operários (proletariado) “se sentissem bem”, para maximizar a produção, e trazer a noção de trabalho “bem feito” das antigas comunidades. Nota-se que aqui a real intenção, não era de melhorar as condições do proletariado, mas de criar um superficial envolvimento desse com o produto, para que melhorasse a qualidade da produção capitalista.

As cidades modelos construídas em torno das fábricas estavam equipadas com moradias decentes, mas também com capelas, escolas primárias, hospitais e confortos sociais básicos – todos projetados pelos donos das fábricas junto com o resto do complexo de produção. A aposta era na recriação da comunidade em torno do lugar de trabalho para “toda a vida” (Bauman, 2003, p. 37).

Com isso demonstrava-se uma tentativa de retorno aos sentimentos típicos da comunidade, valorizando o esforço em prol de um bem maior, algo ao qual as pessoas desejem participar, não como indivíduos, mas como um grupo portador de interesses comuns sob o controle do capital.

A comunidade também sempre ocupou e ocupa um papel central no imaginário cristão. Sob ela se pautam os princípios que preveem a convivência harmônica entre os homens, com o fim último da graça divina. Paiva (2003, p. 67) destaca, que “decididamente, falar em comunidade significa também ter de assumir que se coloque em questão os fundamentos cristãos”; uma vez que seus ideais fundaram a perspectiva de comunidade no ocidente, e a partir deles se desenvolveram grande parte das demais matrizes teóricas que embasam a comunidade.

Há um reconhecimento no sentido de retomar a ideia da “comunidade perdida”, disposta pelo imaginário cristão, um anseio de volta ao paraíso do qual fomos expulsos. Assim, um dos principais propósitos da comunidade é interligar os membros, em comunhão. Deixar de ser o sujeito solitário [5] criado pela sociedade industrial.

Um dos propósitos básicos do ideal de comunidade é que nela o indivíduo encontra-se ligado, em relação. (...) Porque, na estrutura societária, a associação passa a reger a vida dos indivíduos com propósitos de aproximação. A visão de que o indivíduo justifica sua existência a partir da relação com os outros, na medida em que possuem interesses comuns, sugere que algo está sendo criado, e que, portanto, não é inerte à natureza do homem (Paiva, 2003, p. 84).

As missões formadas pelos jesuítas no sul da América Latina podem ser tidas como um exemplo de tentativa de implantação de comunidades como um paraíso celeste, na terra, conforme Paiva (2003).

As propostas da comunidade religiosa, contudo, são colocadas em xeque na época moderna, quando surgem novas formas de sociabilidade. É neste contexto que Esposito (2003) faz uma contraposição à categoria communitas, onde o sujeito tem dever e dívida para com os outros, e a categoria immunitas, na qual o sujeito (immunis) está dispensado de dívidas ou obrigações em relação aos outros. Portanto, “estão liberados do contato que ameaça a sua identidade e a sua individualidade, daquilo que os expõe a um possível conflito com o seu vizinho” (Paiva e Sodré, 2009, p. 8).

Buber (2008, p. 35) rejeita a comunidade nos moldes cristãos, por entender que essa se baseia no interesse do homem pela graça divina, que visa vantagens, proveito. O autor assevera que “[…] toda a comunidade antiga está sujeita ao utilitário […]”. Para ele a verdadeira comunidade deve aflorar na natureza do homem, por amor ao divino.

A nova comunidade tem como finalidade a própria comunidade. Isto, porém, é a interação viva de homens íntegros e de boa têmpora na qual dar é tão abençoado como tomar, uma vez que ambos são um mesmo movimento. Que homens maduros, já possuídos por uma serena plenitude, sintam que não podem crescer e viver de outro modo, exceto entrando como membros em tal fluxo de doação e entrega criativa, que eles se reúnam, então, e se deixem cingir as mãos por um e mesmo laço, por causa da liberdade maior, eis o que é comunidade, eis o que desejamos (Buber, 2008, p. 33-34).

Percebe-se, ainda, a existência de uma viva relação entre as concepções de comunidade religiosa e rural, uma vez que muitas das comunidades rurais no momento de seu estabelecimento instalaram-se, juntamente de centros religiosos compartilhados por seus membros.

Porém, a comunidade rural se diferencia da religiosa já que seu fim não é a graça divina, mas facilitar a vida dos membros, no esforço mútuo para superar as dificuldades do campo. A comunidade rural surge enraizada nas antigas tradições medievais, diante das quais se cultivava uma maior organicidade nos relacionamentos, e uma típica autossuficiência do grupo, que conseguia gerir a si, com os limitados recursos extraídos de onde esse se encontrava.

Tais preceitos continuam, mesmo na contemporaneidade, sendo atraentes para os centros urbanos, posto que é notório o intuito destes em reproduzir as características atraentes dessa comunidade rural, como por exemplo, os shopping centers (Paiva, 2003).

Santos Jr. (2006) também observa um movimento de retomada das comunidades rurais, contextualizadas culturalmente na sociedade contemporânea. Segundo o autor, este movimento constitui-se a partir justamente do aumento dos desequilíbrios sociais, da degradação ambiental e da perda forte de sentidos coletivistas e comunitários, decorrente do crescimento exponencial da produção da riqueza material no mundo, através do tripé tecnociência, indústria e mercado. A ordem racional-materialista, dinamizada pelo industrialismo capitalista, artificializou territórios e automatizou as relações do ser humano consigo, com o outro e com o meio [6].

Assim, mesmo com a pujança material que o sistema capitalista atingiu após a II Grande Guerra e com a difusão do american way of life, surgiram movimentos contestatórios e libertários que visavam a reestruturação sociocultural e da relação das sociedades com a natureza. Portanto, almejar um novo sentido societário a partir do princípio da autonomia levou a formação de novas comunidades (Santos Jr, 2006). A retomada do espírito comunitário é decorrente, neste caso, da complexificação social refletida pelo desenvolvimento da sociedade.

Santos Jr. (2006) retoma a revisão histórica de Robert Gilman, sobre múltiplas formas de organização dos assentamentos e grupos humanos, e explica que por mais de 7 mil anos os assentamentos humanos eram formados por pequenas coletividades (bandos, tribos, aldeias, vilas, cidadelas), que desenvolveram estruturas e relações societárias de base territorial, condicionados por modelos institucionais, sociais, culturais, tecnológicos de suas épocas. O autor ressalta que as relações sociais não decorriam de uma opção ou de uma intenção específica, o que se constitui como a principal diferença entre as comunidades primitivas e sua constituição contemporânea, quando muitas experiências comunitárias decorrem da

[...] força de revolta ou de re-significação dos laços identitários de certos grupos com o seu tempo e a sua geografia. Buscaram se diferenciar dos contextos hegemônicos de onde surgiram, sustentando-se em visões elevadas ou “utópicas”. Nesses casos, o viver em conjunto se dá como uma opção fundamentada em princípios comuns, uma “causa” ou “missão”, pelos quais, as pessoas compartilham um forte senso de serviço e comprometimento. A despeito do contexto social mais geral em que viviam, esforçam-se em recriar coletivamente suas vidas, compartilhando práticas e crenças tidas como radicais. Para alguns autores, essas comunidades se diferenciam das experiências das comunidades tradicionais, devido à intenção pela qual são formadas. Elas são chamadas, assim, de comunidades intencionais (METCALF, 1996; KOZENY, 2000). [...] Apesar de surgirem de formas diversas e adversas, na maioria das vezes em oposição aos contextos hegemônicos de suas épocas, as comunidades intencionais vigoram como experiências sociais ricas e inauditas, na tentativa de tornarem reais sonhos e utopias. Assim, ao espírito comunitário alia-se um forte sentimento de comprometimento com a realização de um viver humano que se coadune com forças criativas e sublimes da própria Vida. O devir histórico do humano em parceria com a Terra e com o Mistério (Santos Jr, 2006, p. 4-5, e p. 7).

As comunidades utópicas intencionais comprovam pressuposições de Buber quando relaciona o desejo de viver em comunidade a um elemento orgânico que é parte da condição de humanidade, decorrente da necessidade de vínculos sociais/coletivos e com sua própria vida (Santos Jr, 2006; Buber, 2008).

Exemplo de comunidades intencionais que buscam tornar reais sonhos e utopias compõem o livro “Nowtopia: iniciativas que estão construindo o futuro hoje”, de Chris Carlsson. Permacultores, horticultores que cultivam em terrenos urbanos baldios, cicloativistas, pessoas que criam seu próprio biocombustível e criadores de softwares livres representam um movimento cultural e político fruto de ações criativas de fuçadores engajados na cultura do “faça você mesmo”, que tem unido pessoas em grupos locais e ou em redes globais, estabelecendo e reavivando o sentido de comunidade. Nestes casos, as pessoas estão unidas a partir de atividades práticas que se contrapõem à cultura capitalista. Criatividade, cooperação, liberdade de escolher seus modos de trabalho e de ocupação do tempo, inventividade tecnológica e novas formas de relações sociais compõem características dessas “ilhas de utopia” em que “os dois componentes cruciais são o tempo e a tecnosfera”, afirma Carlsson (2014, p. 20). Estas iniciativas vão ao encontro da afirmação de Castells, segundo o qual na sociedade em rede a identidade de projeto desenvolve-se tendo como origem a resistência comunal.

[…] as pessoas resistem ao processo de individualização e atomização, tendendo a agrupasse em organizações comunitárias, que, ao longo do tempo, geram um sentimento de pertença e, em última análise, em muitos casos, uma identidade cultural comunal. Apresento a hipótese de que para que isso aconteça, faz-se necessário um processo de mobilização social, as pessoas precisam participar de movimentos urbanos (não exatamente revolucionários), pelos quais são revelados e defendidos interesses em comum, e a vida é, de algum modo compartilhada, e um novo significado pode ser produzido (Castells, 2001, p. 79).

Partindo do pressuposto que comunidades locais constituem fontes de identidades quando construídas por meio da ação coletiva, para Castells, as comunas culturais – movimentos ou grupos sociais – são a principal alternativa para a construção de novos significados na sociedade contemporânea, que podem dar lugar a fluxos reversos de informação, por resistirem às tendências sociais dominantes. A resistência comunal tem como objetivo a defesa de fontes autônomas de significados. Assim, os movimentos sociais constroem identidades defensivas que servem de refúgio e fonte de solidariedade, já que essas comunas são construídas em torno de valores com significado e uso compartilhados, e marcado por códigos de autoidentificação [7].

3. Da comunidade à sociedade: aspectos sociológicos

A sociedade é decorrente de uma evolução histórica das comunidades? Ou seria a junção de múltiplas comunidades? É possível a formação de comunidades na sociedade? O que é comum à comunidade? Estas são algumas das questões que parecem ter permeado o pensamento dos autores que debruçaram-se sobre a relação entre comunidade e sociedade.

Polsby (1974) sustenta que, de modo convencional, a comunidade é considerada enquanto uma população que vive limitada geograficamente por um território físico e politicamente pelas suas normas, o que por si estabelece um problema, já que decisões externas à comunidade a afetam. Mesmo com diferentes formas de distribuição de poder nas comunidades locais, que o autor categoriza em estratificadas e pluralistas [8], as comunidades desenvolvem seus próprios modos de responder à diversidade das pressões interna e externa.

Quanto a isto Sanders (1974) lembra que, de acordo com as definições das Nações Unidas, as comunidades combinam a resistência externa com a livre determinação e o esforço local organizados e, como consequência, buscam atingir seus objetivos de caráter material e imaterial.

Este sucesso depende do grau de integração e organização/desorganização entre os grupos. Deste modo, Bernard (1974) conceitua a comunidade como um sistema social territorialmente limitado ou um conjunto de subsistemas com funções integradas (econômico, político, religioso, ético, educativo, jurídico, socializador, reprodutivo, etc.), que tem uma população residente, cultura material ou equipamentos com os quais operam esses subsistemas. Para este autor, o sentimento de “nós” ou intimidade atribuído “nostalgicamente” a comunidades pré-industriais idealizadas inexiste, apesar da comunidade, para existir, exigir um consenso mínimo.

Para Bernard, a comunidade tem uma estrutura normativa, herdada do passado ou conscientemente instituída que se desorganiza quando algum dos seus subsistemas deixam de funcionar efetivamente, o que faz com que não seja um fenômeno sociológico unidimensional fácil de definir ou conceituar.

O tipo ideal de comunidade na qual não existe desorganização é aquela em que todos os subsistemas funcionam perfeitamente de modo a atender à necessidade de todos, com mudanças sincronizadas e compatíveis entre todos os subsistemas. A finalidade da mudança é ampliar a organização dos sistemas. Bernard admite a improvável aplicação empírica do conceito, já que em toda comunidade há um certo grau de desorganização, muitas vezes decorrente dos conflitos entre grupos e subsistemas. As comunidades modernas, altamente especializadas, tornaram-se vulneráveis a processos de desorganização também estratégica, quando grupos se organizam para demonstrar a falta de consenso entre governados e governos em relação a alguma situação.

Ferdinand Tönnies em seu livro Gemeinschaft und Gesellschaft, de 1887, caracterizou a comunidade pela vontade natural ou essencial (gemeinschaft) e a sociedade por sua vontade de escolha ou racional (gesellschaft) [9]. A primeira, Gemeinschaft, se refere a volición que surge do temperamento do ser, de seu caráter e de seus hábitos. A relação entre os sujeitos é baseada na tradição, parentesco e amizade. O sistema de controle é informal, característico da família, de um clã, de uma religião. O termo denota comunidade de sentimentos, semelhanças, experiências compartilhadas. Assim, como o parentesco formal, a vizinhança e a propriedade coletiva produzem uma unidade análoga, portanto, este sentimento não tem a ver com relações sanguíneas ou relativas à localidade. Por outro lado, na vontade racional, Gesellschaft, a volición está dominada pelo pensamento. Cada indivíduo está por si e isolado, mantendo uma relação de tensão e separação com os demais, predominando a lógica de mercado, onde o ganho para um é perda para outro. A relação entre os indivíduos é formalizada por contratos. O sistema social é predominantemente impessoal e anônimo, no qual cada um busca precaver-se em relação ao outro (MINER, 1974). Assim, enquanto na sociedade as relações se caracterizariam como mecânicas e competitivas, na comunidade seriam de natureza orgânica e cooperativas.

Tönnies descreveu que na história dos grandes sistemas de cultura, a um período de Gemeinschaft segue-se um período de Gesellschaft, já que se passou de um período de relações sociais baseadas na vida familiar e na economia doméstica para formas cooperativas baseadas na localidade com o desenvolvimento da agricultura e dos povoados rurais e, na sequência surge a vida semiurbana e a comunidade de espírito na ordem religiosa e artística. O período de Gesellschaft inicia-se com o crescimento da vida urbana baseada no comércio e em relações contratuais, que evolui para a industrialização e a utilização racional do capital e do trabalho, acompanhadas do desenvolvimento do Estado e da vida nacional, da ciência e da opinião pública. Esta percepção linear histórica tem sido criticada atualmente, quando se pode perceber a mescla de elementos dos dois tipos ideais de Tönnies em diferentes grupos sociais (Miner, 1974).

Mayhew (1974) afirma que há diversas concepções de sociedade (organísmica, romântica, econômica, interacionista) e essas, enquanto sistemas que se superpõem ou se cruzam, variam conforme as interações entre pessoas e tipos de atividades. Quanto às comunidades, o autor entende que para uns elas são unidades de base local, dentro de sociedades mais amplas; para outros, o termo comunidade faz referência a alguns aspectos da sociedade, tais como seus componentes de solidariedade ou espaciais. Outros, particularmente aqueles que seguem a tradição sociológica alemã, distinguem as comunidades como tipos de sociedades relativamente solidárias. E, se a análise sociológica deseja representar de maneira adequada estes conceitos, diante dos processos de globalização não poderá ser inflexível quanto aos limites geográficos, ressalta.

Depreende-se, neste sentido, que a sociedade seria resultado de uma complexificação nas relações comunitárias, ideia com a qual Morin compactua.

As sociedades humanas desenvolveram e complexificaram esse duplo caráter sociológico: o de Gesellshaft (relações de interesse e rivalidade) e de Gemeinshaft (comunidade). O sentimento de comunidade é e será fonte de responsabilidade e de solidariedade, sendo estas, por seu turno, fonte de ética (Morin, 2011, p. 23). [10]

Retomando as questões iniciais, a organização da sociedade pode ser decorrente de uma evolução histórica das comunidades, mas não é linear como se poderia pensar, e sim uma evolução que complexifica a sociedade dada as múltiplas formas comunitárias que a compõe na contemporaneidade, quando não se pode refletir sobre o termo comunidade sem referir-se ao maciço intercâmbio cultural decorrente do avanço tecnológico e cultural, que caracterizam a sociedade globalizada, marcadamente intercultural. O que é comum à comunidade? O que parece ter permanecido como um fio, um algo comum às diferentes comunidades é o senso de solidariedade e de compartilhamento [11], mas é preciso reconhecer que este sentido é determinado pelas mais diversas necessidades e interesses humanos.

4. Elementos conceituais

“Comunidade” é proveniente do termo communitas que tem sua formação baseada nos termos cum e munus, conforme Esposito (2003, p. 48), que desdobram-se nos sentidos de relação com os outros, um estar junto (sentido de cum), em uma relação de dar sem receber em troca por dever, obrigação, retribuição (sentido de munus), ao qual o autor refere-se também como o “centro vazio da comunidade, o dom de si ao qual o sujeito se sente arrastado por um dever incontornável, porque coincide com o próprio desejo”.

Esposito (2003) desacomoda e perturba quando afirma que na comunidade o que une é justamente o que falta aos sujeitos: o vazio compartilhado que opera como elemento essencial da união, do ser-para-os-outros de Heidegger (Duarte, 2012). Em comunidade o comum e o próprio se misturam ao mesmo tempo que o comum é todos terem o impróprio: “não é o próprio, mas o impróprio – ou mais drasticamente, o outro – o que caracteriza o comum” (Esposito, 2003, p. 31). Para o comum existir é preciso o outro. Em comunidade o ser encontra-se com o vazio de si mesmo, já que é forçado a sair de si mesmo, a alterar-se, viver o estranhamento, desapropiar-se – ausentar-se do próprio. É o ser como entre, o ser como relação com os outros em um não pertencimento que é comum.

É uma subjetividade mais vasta, “uma qualidade que se agrega a natureza dos sujeitos”, que faz os “sujeitos de comunidade” (Esposito, 2003, p. 23), o que ultrapassa a noção de identidade individual. Assim, comunidade refere-se a algo maior que a identidade, a um todo, um pleno, uma potência. É um bem, um valor, uma essência que pode ter nos pertencido e ter sido perdida e reencontrada noutro tempo voltando a nos pertencer. Trata-se de uma dialética, segundo o autor, “de perda e reencontro, alienação e apropriação, fuga e retorno” (p. 45).

Há que se ter sempre presente esta dupla cara da communitas: é ao mesmo tempo a mais adequada, senão a única, dimensão do animal “homem”, mas também sua deriva, que potencialmente o conduz à dissolução. Desde este ponto de vista, então, a comunidade não só não se identifica com a res publica, a “coisa” comum, como é mais bem o poço ao qual esta corre o risco de resbalar. O desmoronamento que se produz em suas bordas e em seu interior (Esposito, 2003, p. 33).

Duarte (2011, p. 24), se refere a Esposito como quem pensa a comunidade como um ser-em-comum a partir do questionamento filosófico. Esposito, juntamente com Nancy, desmascaram e questionam “os simulacros e clichês que encobrem a experiência política da comunidade, como também nos deram elementos teóricos para compreender tal experiência em seu potencial de transformação do mundo e de criação de novas relações entre os agentes políticos”. [12]

Por sua vez, Duarte (2011, p. 24) afirma que a “multiplicação de discursos e apelos clamando pela instituição de comunidades” representa uma crise do “comum” que indica seu esvaziamento e perda de significado. Ao mesmo tempo, seria justamente essa crise, que “abre o espaço para uma reflexão renovadora sobre o ser-em-comum”. Este posicionamento é compartilhado por Hobsbawm (1995, p. 416): “jamais a palavra ‘comunidade’ foi usada mais indiscriminada e vaziamente do que nas décadas em que as comunidades no sentido sociológico se tornaram difíceis de encontrar na vida real”. [13]

Esposito (2007) considera que a valorização do pensamento da comunidade seria decorrência do niilismo moderno, uma tentativa de busca por um abrigo contra a potência devastadora do nada da sociedade moderna. Enquanto o niilismo é a supressão do nada em comum, é o nada em si, o nada do ser fechado sobre si mesmo, isolado; a comunidade é o nada compartilhado entre todos, o nada em comum, o lugar do mútuo não preenchimento.

A comunidade é apenas um confim e um trânsito entre esta imensa devastação de sentido e a necessidade de que cada singularidade, cada evento, cada fragmento de existência seja em si mesmo sensato. Ela se reporta ao caráter, singular e plural, de uma existência livre de todo pressuposto, ou imposto ou pós-posto. De um mundo reduzido a si mesmo – capaz de ser simplesmente aquilo que é: um mundo planetário, sem direções nem pontos cardeais. Um nada-além-de-mundo. É este nada comum que é o mundo prestes a nos comunalizar na condição de expostos a mais dura ausência de sentido e, contemporaneamente, à abertura de um sentido ainda impensado. (Esposito, 2007, p. 30)

De modo mais romântico e tradicional que Esposito e também articulado com outros autores que debruçam-se sobre o tema, Amitai Etzioni, defensor das teorias da Terceira Via, estabelece que a “boa sociedade” está pautada em princípios do comunitarismo e que as comunidades proporcionam laços de afeto que transformam grupos de pessoas em entidades sociais, que poderiam se assemelhar a uma família ampla. Para o autor, as comunidades transmitem uma cultura moral compartilhada, compreendida por “um conjunto de valores e significados sociais compartilhados que caracterizam o que a comunidade considera comportamentos inaceitáveis e que se transmitem de geração para geração, ao mesmo tempo em que reformulam seu próprio marco de referências moral dia a dia”. (Etzioni, 2001, p. 24)

Vattimo (2007), por sua vez, ressalta que a comunidade requer partilha de sentidos, sentir-se bem com o outro, sentir-se parte, sentir-se com o outro, sentir-se pertencente por participar de um mundo. Uma participação em um jogo ou rito coletivo, partilhando a condição humana. Neste sentido, Morin afirma que as éticas comunitárias são idênticas, o que difere são suas prescrições particulares, obrigações, tabus, rituais.

A ética da comunidade emerge na linguagem e na consciência das sociedades arcaicas; é cimentada, justificada pelo mito do ancestral comum, e o culto aos espíritos ou deuses une de maneira fraternal seus membros. As normas de solidariedade, de obediência às prescrições e aos tabus gravam-se nos espíritos.[…] A ética da comunidade ‘possui’ os indivíduos que a possuem, impõem-se por si mesma nas sociedades arcaicas ou tradicionais e, de maneira irregular e desigual, nas sociedades nacionais” (Morin, 2011, p. 147 e 148).

Seja a comunidade de Esposito (sentido de falta, de vazio ou nada em comum; necessidade do impróprio e de ausentar-se de si; não pertencimento mútuo e busca de abrigo frente ao niilismo), seja a comunidade de Etzioni, Vattimo e Morin (busca de afeto; família ampla; compartilhamento de cultura moral, da condição humana e de sentidos, que teria caráter ancestral), ou ainda seja uma comunidade esvaziada de sentido como afirmam Duarte e Hobsbawm [14], o ser-em-comum é inerente ao ser humano como aponta Bauman [15]. Para esse autor, é certo que o homem contemporâneo não se cansa de procurá-la e mesmo de tentar estabelecê-la, almejando ansiosamente por um “lugar ‘cálido’, um lugar confortável e aconchegante” para defender-se das inseguranças e instabilidades da vida social em tempos de “modernidade líquida” (Bauman, 2003, p.7) [16]. Esse lugar é procurado tanto pelas tribos primitivas quanto contemporâneas.

5. Dimensões ética e estética da comunidade

E se pensarmos a comunidade como ambiência da sociabilidade, troca em busca de novas comunhões, conforme a abordagem dada por Maffesoli? O autor aponta elementos que podem ajudar a atualizar o sentido de comunidade para a nossa época, quando afirma que essa se caracteriza pelo “entrecruzamento flexível de uma multiplicidade de círculos cuja articulação forma as figuras da sociabilidade” (Maffesoli, 1998, p. 109).

Maffesoli (1998, p. 102-103) se refere à sociabilidade como relação táctil “que não significa uma presença plena no outro (o que remete ao político), mas antes estabelece uma relação oca [...] se observa uma ordem de combinações e de associações indefinidas e indiferenciadas”. A sociabilidade é a efervescência do ethos grupal, onde os indivíduos se percebem em sintonia, substrato do reconhecimento e da experiência do outro.

O ethos grupal funda relações de sociabilidade que determinam a formação das tribos, as quais podem ser compreendidas como a forma que tomam também as comunidades contemporâneas. No entanto, diferente da comunidade primitiva, que era única, o pertencimento às tribos contemporâneas é múltiplo e entre elas há acoplamentos. Seus integrantes deformam-se e reformam-se na interação, o que implica um desinformar ou, ainda, um deixar de se combinar.

A ambiência da sociabilidade é de troca em busca de novas comunhões. O sentimento e a experiência partilhados criam solidarismos, que podem permanecer alimentados ou serem substituídos por outros. A fidelidade tribal não é exigência e, assim os indivíduos comungam, paradoxalmente, também nas descomunhões, que resultam do exercício de sociabilidades múltiplas e simultâneas, o que não significa que não se deem como relações profundas. Mas, como estar de acordo com o grupo é a ambiência na qual é possível mergulhar, esta imersão tribal, em tempos “pós-modernos”, pode ser veloz e volátil.

As ambiências formam um constante fluxo, ondas de sociabilidades que entrecruzam-se, atravessam-se e se desvencilham para criar novas relações, carregando consigo heranças maiores ou menores de ethos das relações anteriores. O ir e vir entre tribos e tribos-massa faz parte do que Maffesoli chama “nebulosa afetual”. Essa instabilidade proporcionada pelas religações transformam as sociabilidades em ritos de passagem que caracterizam o neotribalismo: sucessivos engajamentos e desengajamentos. O neotribalismo é caracterizado pela fluidez, pela circularidade de socialidades e pertencimento a várias tribos ao mesmo tempo.

Maffesoli (1996) se pergunta: o que é que fundamenta ou permite o estar junto? Ao que ele esboça duas possibilidades de respostas: às vezes é a lógica do dever-ser, noutras, ao contrário, o sensível, a comunicação, a emoção coletiva.

A esse “modo de ser” ou ethos de experimentar com outros Maffesoli denomina de ética da estética. Reconhecer com outros é o que dá reconhecimento ao que une um ao outro, diz o autor. Assim, a estética tem a função de agregação, de fortalecimento da sociabilidade. O que é vivido e experimentado em comum, que liga uns e outros é compreendido como o “segredo da estética”, para o autor que, deste modo, aproxima o conceito de estética ao de comunidade [17].

Pensar o conceito de comunidade situado na contemporaneidade, a partir da ética da estética que permeia os processos de socialização, como propõe Maffesoli, é garantir a liberdade às relações sociais que o conceito de comunidade tradicional não permitia, e que pressupõe não só solidariedade entre os pertencentes à comunidade.

Para Morin, “o outro é uma necessidade vital interna”. Mas entre o eu e o outro se contrabalançam egoísmo e altruísmo, já que cada um vive para si e, também para o outro, de maneira dialógica”. O sentido de responsabilidade encolheu e o de solidariedade enfraqueceu-se, deste modo os interesses individuais se sobrepõem aos sociais e da espécie, diz o autor. Quando o egocentrismo se alastra e a solidariedade se degrada, “a fonte bioantropológica é enfraquecida pelo primado dos indivíduos sobre a espécie”, o que determina uma “crise ética”, que nada mais é que a crise da religação indivíduo/sociedade/espécie. O ato ético é “um ato de religação, com o outro, com os seus, com a comunidade, com a humanidade e, em última instância, inserção na religação cósmica” (Morin, 2011, p. 28 e 36).

As sociedades humanas são, ao mesmo tempo rivais e comunitárias [18], reconhece Morin. Em relação a esta contradição inerente às relações sociais, o autor afirma:

[...] como mostra o teorema de Arrow, a impossibilidade de harmonizar completamente o bem individual e o bem coletivo, a impossibilidade de agregar um interesse coletivo a partir de interesses individuais, assim como de definir uma felicidade coletiva a partir do conjunto de felicidades individuais (Morin, 2011, p. 48).

No entanto, para Morin, a era planetária suscita uma “ética metacomunitária em favor de todo ser humano, seja qual for a sua identidade étnica, nacional, religiosa, política” (Morin, 2011, p. 24). Para o autor, é a incapacidade de ver o todo, de religar-se ao todo, o fator gerador tanto da irresponsabilidade como da falta de solidariedade. Neste sentido, sugere que se trabalhe “para pensar bem”.

Morin afirma que a unificação técnico-econômica produz fechamentos comunitários, que o excesso de egocentrismo, pela obsessão econômica e pelo espírito tecnoburocrático são elementos desencadeadores das degradações humanas; e que as dificuldades do autoconhecimento e da autoanálise crítica dificultam a lucidez ética que caracteriza o “pensar bem”. No entanto, reconhece que “quanto mais se degradam as solidariedades e comunidades, mais elas são necessárias”. Então, “como fazer os homens viverem fraternalmente?”, se pergunta (Morin, 2011, p. 86). Mais adiante indica uma possível resposta: “A consciência de responsabilidade é característica de um indivíduo-sujeito dotado de autonomia (dependente como toda autonomia). A responsabilidade contudo necessita ser irrigada pelo sentimento de solidariedade, ou seja, de pertencimento a uma comunidade” (Morin, 2011, p. 100). A responsabilidade é para com nossa vida e para com a do outro, portanto o princípio de solidariedade é intrínseco à comunidade, diz. No entanto reconhece que

[...] nossa civilização separa mais do que liga. Estamos em déficit de religação [...] A religação é um imperativo ético primordial que comanda os demais imperativos em relação ao outro, à comunidade, à sociedade, à humanidade [...] Nosso mundo sofre de insuficiência de amor […] A incompreensão impera nas relações entre os seres humanos (Morin, 2011, p. 104, 108 e 109).

Para ele a ética altruísta é de abertura para o outro, de compreensão do outro, já que cada sujeito humano tem a necessidade primordial de ser reconhecido com sujeito humano por um outro sujeito humano. Morin afirma que é necessário entrar em comunidades sem perder a autonomia, assumir a comunidade como prática de convívio.

6. Uma proposta a partir da impossibilidade

A busca de um conceito contemporâneo de comunidade requer que abandonemos uma concepção de “lugar sonhado” e se assuma a impossibilidade, o inacabamento, a contradição, a condição paradoxal do conceito.

A comunidade homogênea, por toda vida, onde todos agem em prol do bem comum e mantém os mesmos interesses para os quais todos deveriam trabalhar, de modo a perpetuar tradições e rituais, a convivência harmônica, o porto seguro, as relações de igualdade e mutualidade entre os membros, os quais depositam entre si uma confiança absoluta, onde o dever-ser com o outro é maior que o dever-ser consigo: digam-nos onde encontrar.

O dever-ser se desvanece aos poucos, assim como senso de coletivo como um bem maior, porque simplesmente representam uma ameaça à individualidade, valor fundamental da sociedade contemporânea. Mesmo nas comunidades rurais ou as novas comunidades intencionais o interesse coletivo é válido até que os conflitos deixem de ser latentes. As comunidades se desfazem. Desengajam-se. Desarticulam-se. Mas logo outras combinações surgem de outros cruzamentos de interesses percebidos em comum. Este movimento de expansão e contração infinito é o destino das comunidades contemporâneas.

Aproximação e distanciamentos. Coalizão e colisão. Comunhão e descomunhão. Estes movimentos sempre existiram nas comunidades, mesmo as mais tradicionais que ainda sobrevivem. Basta conversar mais aprofundadamente com alguns de seus membros para identificar conflitos. É preciso reconhecer que o desenvolvimento técnico, científico, informacional, industrial e capitalista possibilitou a complexidade social e acirrou disputas, muitas vezes enfraquecendo os laços comunitários. Ao mesmo tempo, é preciso perceber que também fizeram surgir novas formas de sociabilidade, movimentos de resistência, que revitalizaram o sentido de comunidade.

A comunidade não requer mais a existência de um local comum. A noção de território se ampliou. Comum não é a geografia física, mas a das ideias, de valores partilhados. O que é comum tende a emergir cada vez menos a partir de tradições e mais espontaneamente, de opções de prazer, de lazer, de convívio, de pensar, de manifestar-se.

O que fica: compartilhar era e é o fim da comunidade. O que muda: agora se compartilham fluxos e não fixos. Isto porque a comunidade se faz tanto de um lugar como de um tempo de construção de um sentido para a vida a partir não só do outro, mas também de um si-mesmo, do auto-respeito de como se quer ser e estar no mundo, talvez da expressão criativa de si. Estes fluxos se presentificam na formação das comunidades e constituem tanto elementos éticos, estéticos e subjetivos, quanto políticos. Então o que é comum além da diversidade? Parece que é mesmo a necessidade de compartilhar. A necessidade de solidariedade é o que permanece, como fixo que flui ainda nas comunidades contemporâneas, onde estiverem: em geografias físicas ou virtuais.

A comunidade em sua expressão contemporânea é mais contraditória e paradoxal que nunca. O estar junto, compartilhar a experiência em uma relação de reconhecimento recíproco requer ocupar um lugar ao mesmo tempo de ausência e presença de si. Para ser é preciso existir com o outro. Esta exigência humana é o que ajuda a constituir a subjetividade de cada um ao mesmo tempo que a limita.

Viver em comunidade é uma busca biológica, social e espiritual do ser humano, muitas vezes porque se encontra diante da percepção do nada e do vazio. É inerente ao ser humano buscar conexão, sintonia, combinação, interação, acoplamento, partilha, engajamento, reconhecimento, viver em coletivo, experimentar o sentir comum, cooperar, confiar, participar, responsabilizar-se, conviver, buscar empatia consigo, com o outro, com a espécie, coma natureza e com o cosmo. Do mesmo modo, é intrínseco ao ser humano a necessidade de manter sua liberdade na era do individualismo. Comunidade é um conceito determinado pela sua impossibilidade de realizar o que busca sem que haja alguma forma de controle.

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1. Pesquisador do grupo de pesquisa Comunicação, Educação Ambiental e Interfaces - CEAMI (CNPq). E-mail arturlazzari@gmail.com.
2. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento (PPGAD), UNIVATES. Coordenadora do grupo de pesquisa Comunicação, Educação Ambiental e Interfaces - CEAMI (CNPq). E-mail janemazzarino@gmail.com.
3. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento (PPGAD) e do Programa de Pós-Graduação em Sistemas Ambientais Sustentáveis (PPGSAS), UNIVATES. Pesquisadora do grupo de pesquisa Comunicação, Educação Ambiental e Interfaces - CEAMI (CNPq). E-mail lucianat@univates.br
4. Este estudo é resultado de pesquisa apoiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.

5. A solidão não é vista necessariamente como algo ruim para tais ideias, pois, segundo Bonhoeffer, para viver em comunidade devemos saber ser sozinhos. ‘Só a comunidade nos ensina a verdadeira solidão e só na solidão sabemos o verdadeiro sentido da comunidade, porque viver em comunidade sem saber se isolar é cair no vazio das palavras e dos sentimentos, ao passo que querer se isolar sem a presença da comunidade é cair no golpe da vaidade, do narcisismo e desespero’. A solidão, considerando as atividades quotidianas do cristão, em especial a oração e a meditação, tem uma função importante e também configura-se como caminho para abordagem da diferença e da aceitação (Paiva, 2003, p. 86).

6. No espaço geográfico globalizado, não apenas os territórios e as pessoas são unificados por um mercado que já começava a se tornar integrado desde o mercantilismo, mas, por uma rede cibernética de informação, tecnologia e cultura. A obediência à operacionalização da excelência científica unifica as idéias, as redes de comunicação e de transporte materializam os circuitos, o design mimetiza o aparelhamento arquitetônico e instrumental dos territórios e objetos, a automação faz o mundo girar e o consumismo dinamiza os desejos ao tempo que os emudecem. [...] No entanto, no centro do meio técnico-científico-informacional não necessariamente existem apenas uniformidades e consentimentos. A história conhece também revoluções, contestações e inconformismos: classes, grupos e pessoas, que, oprimidas ou inquietas, apaixonadas, buscaram e buscam novas formas de sociabilidades e socializações (Santos Jr, 2006, p.2 e p. 3).

7. Conforme Castells (2001, p. 85) “devido ao fato de que os novos processos de dominação aos quais as pessoas reagem estão embutidos em fluxos de informação, a construção da autonomia tem de se fundamentar nos fluxos reversos da informação”. Esses fluxos reversos podem se dar com a criação de canais de comunicação próprios, pela ocupação de espaços públicos, inserindo-se em redes sociais, apropriando-se de espaços midiáticos tradicionais ou não, entre outras formas.

8. Enquanto a teoria de estratificação baseia-se na análise da relação hierárquica de poder decorrente de aspectos de classe e posição social, a teoria pluralista leva em conta diversos elementos – tempo, cultura, dinheiro, situação oficial, energia, popularidade, status social, coesão, mobilidade, tamanho dos grupos, interesses, etc. – que afetam a tomada de decisões. Portanto, o que define o poder na comunidade não é a detenção de poucos recursos em grande quantidade, mas a combinação de diversos recursos.

9. Ferdinand Tönnies foi estimulado por Maine, Marx e Hobbes no desenvolvimento de sua distinção entre comunidade e sociedade em seu livro Gemeinschaft und Gesellschaft, de 1887 (Miner, 1974).

10. Peruzzo (2006) menciona que as contribuidões de Tönnies, na visão de alguns de seus seguidores e críticos mais severos, são vistas como de um possível caráter ilusório ou romântico, em face da perfeição atribuída à comunidade, por parte do pensador. A relação de oposição entre comunidade e sociedade teria servido de substrato do projeto social moderno, no qual os ideais liberais, pautados na autonomia da sociedade perante o Estado, se contrapunham aos ideais comunistas, baseados nas relações comunitárias, existentes entre os homens.

11. O termo gemeinschaftsbewusstsein sintetiza os termos comunidade e consciência, que unidos tem o significado de solidariedade na língua alemã.

12. Tarizzo (2007), a partir de ideias de Nancy, Esposito e Agambem, baseia sua análise de comunidade como ser em comum. A comunidade se desorienta quando perde o sentido da vida em comum. A partilha significa, neste sentido, decomposição e participação do ser, aquilo em que todos nos dividimos e que é o que todos temos em comum. A existência é sempre co-existência. Assim, o sentido do ser é ser com o outro, ser comum na existência: ser em comum, ser com, ser uns com os outros.

13. Um dos possíveis modos de esvaziar o termo se coloca quando está articulado a formas a recuperar identidades, impedindo-se a entrada de estranhos em uma “comunidade imaginada”, termo usado por Benedict Anderson. Deste modo o signo comunidade serve para “reiterar as relações de poder estruturadas historicamente, e de modo efetivo, para legitimar práticas políticas objetivadas na preservação do atual ordenamento social (status quo)” (Yamamoto, 2007, p. 8).

14. Duarte apresenta pensamento muito mais próximo de Esposito que de Hobsbawm, tanto que essa questão do esvaziamento é apontada por ele como elemento para que seja possível pensar criticamente a comunidade desvincilhada de fundamentalismos idealistas, para que se abra, através dessa crise do comum, “espaço para uma reflexão renovadora sobre o ser-em-comum” (Duarte, 2011, p. 24).

15. Para Duarte, “A título de exemplo da abordagem recusada pelo pensamento da comunidade podem ser mencionadas as interessantes análises sociológicas propostas por Zigmunt Bauman, que enfatizam os sentimentos ambivalentes e contraditórios do homem contemporâneo em relação à comunidade, para quem ela seria simultaneamente objeto de nostalgia, ansiedade e temor” (Duarte, 2011, p. 25).

16. Por outro lado, homem busca insistentemente escapar às demandas e exigências constitutivas da vida comunitária, assumidas como um peso insuportável que constrange e limita a liberdade individual.

17. Maffesoli considera e estética (aesthesis), o sentir comum, como o “melhor meio de denominar o ‘consenso’ que se elabora aos nossos olhos, o dos sentimentos partilhados ou sensações exacerbadas: Cum-sensualis”. E afirma noutra passagem: “uma ética pode jorrar de uma estética”. Mais adiante afirma: “denomino ética, uma moral ‘sem obrigação nem sanção’; sem outra obrigação que a de unir-se, de ser membro do corpo coletivo, sem outra sanção que a de ser excluído, se cessa o interesse (inter-esse) que me liga ao grupo. Eis a ética da estética: o fato de experimentar junto algo é fator da socialização”. (Maffesoli, 1996, p. 37 e 38).

18. Esta dinâmica paradoxal tem relação com a dinâmica das partículas conforme demonstrado pela física quântica. “[...] uma das consequências mais surpreendentes da física quântica, demonstrada desde a experiência de Aspect é que todas as partículas que interagiram no passado estão religadas de maneira infratemporal e infraespacial, como se o universo fosse sustentado por uma religação invisível e universal. Assim, encontramos a dupla presença antagônica de uma dispersão que separa ao infinito, dilatando o espaço-tempo, e de uma religação que ignora a separação do tempo e do espaço. De um lado, uma extraordinária força de separação mais forte do que todas as forças de atração; de outro lado, uma extraordinária força de religação que mantém a união na dispersão e conecta de maneira inacreditável todos os elementos do universo” (Morin, 2011, p. 38). Alain Aspect é um físico francês que comprovou com sua equipe a “ ação a distância”.


Revista ESPACIOS. ISSN 0798 1015
Vol. 38 (Nº 03) Año 2017

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