ISSN 0798 1015

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Vol. 38 (Nº 44) Año 2017. Pág. 25

Perspectivas da Grande Cabotagem no Mercosul

Perspectives of Short Sea Shipping in Mercosur Countries

Fernando SEABRA 1; Giulia Paggiarin FLORES 2; Thais BALISTIERI 3

Recibido: 11/05/2017 • Aprobado: 21/06/2017


Conteúdo

1. Introdução

2. Grande Cabotagem: conceitos e regulação no cenário internacional

3. Grande Cabotagem e integração regional no MERCOSUL

4. O comércio e o potencial de navegação costeira no MERCOSUL

5. Considerações finais

Referências


RESUMO:

O objetivo deste estudo é avaliar as perspectivas de expansão do transporte marítimo entre países membros do MERCOSUL. Analisa-se a definição de navegação costeira entre países próximos, denominada de Grande Cabotagem ou Short Sea Shipping (SSS). Realiza-se uma análise de benchmarking sobre marcos regulatórios da Grande Cabotagem. Empiricamente, apontam-se os principais fluxos comerciais e produtos que podem migrar do modal rodoviário para a Grande Cabotagem no Mercosul. Indica-se, por fim, o potencial do SSS para integração da região e os avanços institucionais necessários.
Palavras-chave: Grande Cabotagem; MERCOSUL, Logística e Integração.

ABSTRACT:

The aim of this study is to evaluate the prospects for expansion of maritime transport between MERCOSUR countries. We analyze the definition of Great Cabotage or Short Sea Shipping (SSS). We also review the literature with respect to regulatory frameworks regarding SSS. In empirical terms, the main trade flows and products with high prospects to migrate from roads to SSS are identified. Lastly, we indicate the SSS potential to regional integration and point out the required institutional changes.
Keywords: Short Sea Shipping; MERCOSUR; Logistics and Integration.

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1. Introdução

A navegação de cabotagem – seja definida tradicionalmente como navegação costeira em âmbito nacional ou, de modo ampliado, como sendo a navegação entre países próximos e integrados por acordos preferenciais de comércio – tem sido estimulada como uma alternativa de transporte não apenas mais competitiva do ponto de vista de custo, mas também socialmente desejável, considerando a redução da dependência rodoviária da matriz de transporte (entre estudos que comparam a navegação de cabotagem com outras alternativas modais, estão Paixão e Marlow (2005) e Musso e Marchese (2002)). Deste modo, pode-se assumir que a constituição de infraestruturas de transporte que integrem países membros de blocos regionais atue como um elemento facilitador da complementaridade produtiva e do comércio entre estes países.

De fato, a partir da concepção do Novo Regionalismo, também chamado de Regionalismo Aberto, em que os acordos preferenciais de comércio entre os países membros são compatíveis com os processos de globalização produtiva e comercial, as estratégias de formação de cadeias produtivas em nível de regiões se consolidam. Assim, não obstante um maior grau de liberalização multilateral, os blocos regionais, para obter ganhos de competitividade em indústrias específicas, estimulam as trocas regionais em setores altamente integrados. Tais estratégias requerem um sistema de transporte eficiente (baixo custo) e seguro (com baixo risco de acidentes).

A cabotagem ampliada para ligações marítimas entre países próximos – no presente caso, membros de um mesmo bloco – é denominada de Grande Cabotagem e assumida como sinônimo, neste estudo, do termo short sea shipping, A hipótese deste trabalho é que a Grande Cabotagem no contexto do Mercosul pode ser uma alternativa economicamente viável, quando questões de infraestrutura e institucionais são superadas.

Deste modo, o presente estudo tem como objetivo avaliar as potencialidades da Grande Cabotagem entre os países membros do MERCOSUL, incluindo entre estes os principais países associados ao bloco. Para tanto, a seção 2 analisa os conceitos, a regulação e os incentivo à cabotagem nos principais países do mundo (inclusive membros do MERCOSUL). A seguir (na seção 3) discute-se a relação entre blocos regionais e transporte, em especial no contexto de acordos no âmbito do MERCOSUL. A seção 4 dedica-se a uma avaliação empírica do comércio entre os países membros e associados do MERCOSUL e do potencial da cabotagem em relação a tais fluxos. Por fim, apresentam-se argumentos conclusivos (seção 5).

2. Grande Cabotagem: conceitos e regulação no cenário internacional

A avaliação do papel da Grande Cabotagem para o comércio e a integração produtiva no âmbito do MERCOSUL depende do marco institucional; isto é, como os países e o próprio bloco tratam, do ponto de vista conceitual e legal, a navegação costeira entre os países da região. Além dessa revisão no contexto sul-americano, há outras interpretações adotadas em âmbito mundial, como as adotadas pela União Europeia e Estados Unidos, que podem servir de referência à adoção de uma definição de Grande Cabotagem.

No Brasil, a legislação diferencia o transporte marítimo em cinco tipos de navegação, a saber: a de longo curso, cabotagem, apoio marítimo, apoio portuário e navegação interior. Conforme a Lei nº 9.432, de 1997, a navegação de cabotagem é definida como sendo aquela realizada entre portos ou pontos do território brasileiro, por via marítima ou vias navegáveis interiores (Art. 2º) (BRASIL, 1997).

O Uruguai apresenta uma interpretação da navegação de cabotagem mais ampla do que a brasileira, em parte por possuir poucos portos em seu território. Conforme a Lei nº 12.091 de 1954 e o Decreto 23.913 de 1956 que a regulamenta, a navegação e o comércio de cabotagem configuram-se como aqueles: realizados entre os portos da República; serviços entre portos e praias nacionais; travessias por via fluvial entre portos nacionais e os da Argentina, Brasil e Paraguai; e entre portos nacionais e portos marítimos argentinos e brasileiros, dentro de um raio de 900 milhas a partir do porto de Montevidéu – sendo esta última modalidade chamada de Gran Cabotaje (Art. 1º a 4º) (URUGUAY, 1956). Os navios matriculados no registro de cabotagem (que compreende os que realizam cabotagem propriamente dita e a grande cabotagem) são favorecidos com a exoneração de algumas tarifas, como taxas portuárias e impostos sobre combustíveis e lubrificantes (Art. 28º) (URUGUAY, 1956).

O entendimento argentino sobre a navegação de cabotagem compreende o trânsito de navios (prioritariamente argentinos) entre portos nacionais (cabotagem nacional) e também entre portos nacionais e portos de países limítrofes (cabotagem fronteiriça), que são favorecidos com os mesmos benefícios, conforme disposto no Decreto N° 12.942/44 (que regulamenta a Lei N° 10.606, de 1918), no seu Artigo 5º. A navegação de cabotagem, portanto, tem por finalidade a comunicação e o comércio entre portos do país e países vizinhos sem perder de vista a costa. Sobre as isenções aduaneiras, os navios de cabotagem não precisam pagar taxas de entrada e taxas sanitárias quando provenientes de portos nacionais ou países vizinhos (ARGENTINA, 1944).

Com interpretação semelhante a do Brasil, a Venezuela, que aderiu ao MERCOSUL em agosto de 2012, entende por navegação de cabotagem aquela realizada entre pontos e portos compreendidos em território sob jurisdição venezuelana, obrigatoriamente com navios que possuem o Registro Naval Venezuelano, conforme o Artigo 108º do Decreto 6.126, de 2008 (VENEZUELA, 2008). A mesma interpretação é adotada por vários países associados ao bloco, como a Colômbia, Equador, Peru e Chile.

Do ponto de vista de um benchmarking internacional, podem-se incluir os marcos institucionais de outros países que possuem costas de longa extensão e que são membros de acordos comerciais com países vizinhos, como são os casos de Austrália, China, Estados Unidos, Canadá e União Europeia.

Regulada pelo Coastal Trading (Revitalising Australian Shipping) Act 2012, a navegação costeira na Austrália é aquela que ocorre entre estados ou territórios australianos e se aplica apenas a cargas domésticas (ou passageiros). Assim como muitos países sul-americanos, uma das principais características da interpretação australiana é a exclusividade para embarcações nacionais. Contudo, a legislação prevê a obtenção de uma licença temporária a embarcações estrangeiras mediante apresentação de alguns requisitos; como por exemplo, a realização de no mínimo cinco viagens no período de um ano da licença (AUSTRALIAN GOVERNMENT, 2012).

Na China, a peculiaridade da navegação de cabotagem envolve os portos de Hong Kong e Xangai. De modo geral, as leis de cabotagem chinesas não permitem a movimentação de cargas entre portos chineses por embarcações estrangeiras. No entanto, para os portos de Hong Kong e de Xangai – considerados, respectivamente, como uma região administrativa especial chinesa (caracterizado como porto estrangeiro) e como uma nova zona de livre comércio – o transporte de contêineres entre estes dois portos e outros portos chineses é permitido a embarcações de bandeira estrangeira (THE MARITIME EXECUTIVE, 2013).

A definição de short sea shipping (SSS) adotada pela União Europeia (UE) consiste, basicamente, no transporte marítimo entre países europeus; isto é, o movimento marítimo de cargas e passageiros entre portos situados na Europa geográfica ou entre aqueles portos e pontos situados em países não europeus que possuam costa nos mares que banham a Europa. São incluídos, portanto, todos os destinos que fazem fronteira com a UE. O conceito de SSS compreende transporte marítimo doméstico e internacional, serviços de feeder ao longo da costa e aquele com origem ou destino às ilhas, rios e lagos (Sea-river shipping). O conceito também se estende ao transporte marítimo entre Estados-membros da União Europeia e Noruega, Islândia, Estados do Mar Báltico, Mar Negro e Mediterrâneo (COMISSÃO EUROPEIA, 1999). Com o apoio de programas de incentivo à utilização da navegação de cabotagem – tais como o Marco Polo, Autoestradas do Mar e Transporte Marítimo Europeu Sem Barreiras (descritos no Livro Branco da UE) – a implantação de sistemas marítimos eletrônicos de intercâmbio de dados e a consolidação de portos “hub” ou concentradores de cargas, a UE vem adquirindo uma forte integração legal e institucional de regras marítimas e operacionais da navegação costeira. Dessa forma, segundo EUROPA (2011), esse modal representa 18% do volume de carga transportada pela região (superior ao apresentado por Estados Unidos, China e Brasil onde a cabotagem representa, respectivamente, apenas 3%, 2% e 9% da matriz total de transportes).

Já de acordo com a legislação dos Estados Unidos, assim como do Canadá, as atividades comerciais marítimas costeiras entre portos nacionais são restritas a navios de bandeiras norte-americanas e canadenses – segundo, respectivamente, Jones Act (US Merchant Marine Act of 1920) e Coasting Trade Act (1992). Assim, em ambos os países, a navegação costeira é exclusiva para embarcações nacionais com exceção à região dos Grandes Lagos (HODGSON; BROOKS, 2007). Nessa região se aplica um conceito ampliado de cabotagem (SSS), em que se permite a navegação de embarcações de bandeira de qualquer dos dois países ligando portos dos Estados Unidos e do Canadá. O sistema dos Grandes Lagos engloba a hidrovia entre Duluth, Minnesota, e Nova Scotia, que compreende os cinco Grandes Lagos, seus canais de ligação e o rio St. Lawrence (HOUSE OF REPRESENTATIVES, 2011).

É notável que a decisão de adoção de um conceito e um marco institucional mais amplo a respeito de cabotagem é uma estratégia de extensão das facilidades desta navegação costeira para o comércio internacional quando realizado dentro de um bloco econômico (União Europeia) ou com países geograficamente próximos ou com costa comum (casos de Argentina e Uruguai, Estados Unidos e Canadá e da própria União Europeia com países bálticos). A Figura 1 ilustra, de maneira sintética e conforme os argumentos apresentados acima, os países que apresentam legislações mais favoráveis e menos favoráveis a Grande Cabotagem. Pode-se observar que muitos países da América do Sul, embora geograficamente próximos e membros de acordos comerciais, estão entre aqueles que impõem restrições, quase sempre regulatórias, para o funcionamento da Grande Cabotagem.

Figura 1
Legislações mais e menos favoráveis à navegação de Grande Cabotagem

 Fonte: Elaboração própria.

3. Grande Cabotagem e integração regional no MERCOSUL

Em termos teóricos, pode-se argumentar que há uma relação de bicausalidade entre comércio e o transporte em âmbito regional; isto é, a formação de blocos regionais – e, por consequência, o aumento dos fluxos de comércio entre países motivado pela desgravação tarifária no âmbito regional e pela complementaridade produtiva – estimula o transporte entre os países membros e, no mesmo sentido, investimentos em infraestrutura de transporte de caráter regional propiciam iniciativas de facilitação de comércio entre países vizinhos. A presente seção trata, sucintamente, das iniciativas existentes na forma de acordos bilaterais e regionais na área de transporte no âmbito do MERCOSUL.

No processo de formação de blocos regionais os objetivos de integração entre as nações diferem. Em processos mais ambiciosos, que vão além de acordos de preferência tarifária, a integração produtiva – explorando complementaridades de cadeias e mesmo as especializações de cada nação e região – é um componente essencial. No contexto, portanto, de formação e consolidação de níveis de integração mais avançados como uniões aduaneiras e mercados comuns, a integração da infraestrutura, em especial de transportes, desempenha um papel chave para permitir e estimular a mobilidade de bens, capitais e pessoas no âmbito do bloco.

O papel dos custos de transporte no preço final da mercadoria exportada (Figura 2) ganha importância com o próprio processo de desgravação tarifária alcançado pelas rodadas multilaterais de comércio promovidas por GATT/OMC. Com isso – e dado a tendência de elevação dos preços relativos dos insumos energéticos e o baixo dinamismo tecnológico da indústria de transportes – o comércio entre países geograficamente próximos é estimulado. A formação de blocos regionais é, então, influenciada por esse comércio mais eficiente entre vizinhos. Os investimentos em logística que permitem a integração dos mercados de países membros do bloco são viabilizados por esse viés pró-comércio intrabloco. Assim, respeitadas as vantagens comparativas naturais e construídas de cada nação e região, o transporte que viabilize a integração entre países membros de um bloco econômico (em especial aqueles com maior grau de integração) resulta em ganhos decorrentes da especialização regional, da complementaridade produtiva em cadeias de valor e no aumento do comércio (intra e extrabloco).

Figura 2
Custo de transporte, Regionalismo e Comércio Regional

Fonte: Elaboração própria

A expansão de infraestruturas de transporte em âmbito regional pode ser relacionada com a ênfase das relações comerciais dos países. Assim, por exemplo, investimentos em sistemas de transporte que reforçam a complementaridade produtiva e comercial entre países vizinhos – e que, portanto, podem ser caracterizados como bens públicos de âmbito regional – estimulam o comércio regional e a formação de acordos preferenciais de comércio.

Embora os objetivos dos acordos regionais no âmbito da América Latina tenham incluído pautas de desenvolvimento e integração ampliada (além do comércio), foi apenas ao longo da 2ª onda do regionalismo que foram criados blocos comerciais que efetivamente adotaram uma integração mais profunda. O MERCOSUL, embora uma união aduaneira (imperfeita, devido às exceções), tem buscado uma integração além da isenção tarifária no comércio intrarregional e da Tarifa Externa Comum (TEC). Exemplos disso são os acordos de complementaridade produtiva entre setores industriais e de grupos de trabalho na busca de cooperação em áreas como energia e transporte.

Na área especifica de integração de transportes marítimos no âmbito do MERCOSUL (e países associados) – e que, portanto, discipline e estimule a Grande Cabotagem – destacam-se os seguintes acordos: “Convênio entre a República Federativa do Brasil e a República do Chile sobre Transportes Marítimos”, assinado em 1974; “Convênio entre a República Federativa do Brasil e a República Oriental do Uruguai sobre Transporte Marítimo”, assinado em 1975; e “Acordo sobre Transportes Marítimos entre a República Federativa do Brasil e a República Argentina”, com assinatura em 1985. De acordo com a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) [s./d.], todos esses acordos possuem vigência indeterminada.

Entre as disposições dos três acordos, muitos pontos são comuns, como a exigência de que as embarcações utilizadas nesse comércio sejam de bandeira nacional (de um dos países membros do bloco). Outro aspecto tratado é o dos incentivos governamentais para certas cargas, que devem ser mantidos mesmo quando transportadas por navios de bandeira de outro país (ANTAQ, [s./d.]). São restrições à operação de Grande Cabotagem no contexto do MERCOSUL: a exclusividade ou preferência a embarcações nacionais para operar a chamada cabotagem nacional; e o tratamento diferenciado dado a cargas de grande importância econômica, como cargas de petróleo, gás e minerais (excluídas nos acordos do Brasil com Argentina, Uruguai e Chile, ANTAQ, [s./d.]).

Mais abrangentes e perenes do que os acordos bilaterais, os acordos regionais no âmbito sul-americano, embora precipuamente vinculados ao objetivo de integração comercial e produtiva, também têm tratado de integração na área de transportes, seja por investimentos em infraestrutura ou por harmonização de regulação e exigências técnicas. No recente contexto internacional de difusão de blocos regionais, destacam-se no âmbito da América Latina, além do MERCOSUL, organizações como: a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA-2000), a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL-2008) e a Associação Latino-Americana de Integração (ALADI - 1980). Claramente, a IIRSA é a instituição regional com maior comprometimento com a integração de infraestrutura. Composta por 12 países sul-americanos, seu principal objetivo é a integração física entre os países membros, através da expansão e modernização da infraestrutura da região nas áreas de transporte, energia e comunicação. A partir de 2011, a proposta da IIRSA foi incorporada pelo Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento da UNASUL (COSIPLAN) como foro técnico de infraestrutura (IIRSA, [s./d.]).

Em termos de desenvolvimento da infraestrutura, o Artigo 3º do Tratado Constitutivo da UNASUL aponta três objetivos específicos da organização para os membros sul-americanos: (1) a integração energética para o aproveitamento integral e sustentável dos recursos da região; (2) o desenvolvimento de uma infraestrutura para a interconexão da região e dos povos de acordo com os critérios de desenvolvimento social e econômico sustentáveis; e (3) a integração industrial e produtiva, em especial às pequenas e médias empresas, cooperativas, redes e outras formas de organização produtiva (IIRSA, 2011).

Além dos acordos e projetos de integração logística da IIRSA e da UNASUL acima citados, o próprio tratado de união aduaneira entre os países do MERCOSUL representa um estímulo ao comércio e ao transporte entre os países do bloco. A evolução do comércio (exportações e importações) intrabloco do Brasil com o MERCOSUL e principais associados (Bolívia, Chile, Colômbia, Peru e Equador), conforme a Figura 3, indica um aumento expressivo entre 1991 e 2014 (de cerca de 22 milhões de t para 66 milhões (MDIC/ALICEWEB, [s./d.]). Para que esse crescente intercâmbio de bens e produtos se consolide sem entraves logísticos, é essencial um eficiente sistema de transporte e infraestrutura que permita uma articulação eficiente (CASTRO; LAMY, 2000).

Figura 3
Evolução do comércio do Brasil com países do MERCOSUL
e principais associados, em toneladas.

Fonte dos dados: MDIC/AliceWeb. Elaboração própria.

Além disso, existem acordos setoriais e específicos no âmbito do MERCOSUL que tratam de infraestrutura. Em termos de organização de transportes marítimos, o Subgrupo de Trabalho nº 6 do MERCOSUL, relativo ao Transporte Marítimo, define (1) o registro comum de embarcações; (2) a promoção de transporte multimodal; (3) um regime trabalhista para o transporte marítimo e fluvial; (4) normas de segurança de navegação. O bloco negocia ainda um Acordo Multilateral de Transporte Marítimo buscando unificar o setor, aumentando a eficiência do sistema e reduzindo assim os custos e fretes. Porém, os Estados membros enfrentam obstáculos à unificação devido às assimetrias dos custos operacionais, relativos à legislação trabalhista e legislação de reserva de carga existente (CASTRO; LAMY, 2000).

Deve-se notar, contudo, que o crescimento da movimentação de cargas pelo modal marítimo (entre Brasil e resto do MERCOSUL) não foi tão rápido quanto a expansão total do comércio intrabloco – o comércio marítimo cresce a uma taxa média de 2,4% ao ano, entre 1991e 2015, enquanto que o comércio total intrabloco se expande 3,9% ao ano. Esta perda de participação do modal marítimo no total de comércio do Brasil com o MERCOSUL pode representar um potencial de crescimento, especialmente considerando a competitividade da Grande Cabotagem.

4.  O comércio e o potencial de navegação costeira no MERCOSUL

Nesta seção busca-se avaliar a magnitude e a natureza do comércio entre os países membros e associados do MERCOSUL bem como o potencial da Grande Cabotagem associada a estes fluxos de comércio. Na Figura 4, evidenciam-se os 20 maiores fluxos comerciais bilaterais (em US$) com origem e destino (O-D) nos próprios países da região. Pode-se observar, de modo compatível com o princípio da teoria gravitacional de comércio, que o tamanho das economias envolvidas na troca comercial é um determinante preponderante do valor do comércio bilateral.

Figura 4
Valor total do comércio bilateral e distância geográfica entre os
principais países do MERCOSUL e membros associados – 2014

Fonte dos dados: UN Comtrade Database, [s./d.]; International Monetary Fund, [s./d.].
Acesso em: dez. 2015. Elaboração própria.

A influência das massas dos PIB, obtida pela soma do PIB do país de origem e de destino, sobre o comércio por par O-D é evidenciada por uma correlação positiva e relativamente alta (correlação simples de +0,55).  É evidente ainda que a distância entre os principais portos não parece ser decisiva no valor do comércio bilateral na região, o que pode ser explicado pelo fato do comércio ocorrer também por outros modais e pela própria complementaridade produtiva (a importação ocorre do país com custo relativo mais baixo, dado que as distâncias dentro do bloco não são díspares). No entanto, pode-se notar que três dos cinco primeiros pares O-D (Brasil-Argentina, Brasil-Chile e Brasil-Uruguai) correspondem a países que possuem algum acordo específico sobre navegação marítima.

De maneira complementar, a Tabela 1 destaca os maiores fluxos de comércio bilateral por grupo de produto entre países do MERCOSUL e principais associados. De modo geral, os produtos caracterizados como granéis líquidos e granéis agrícolas já são movimentados por via marítima. Contudo, deve-se considerar que o modal hidroviário, em especial para a navegação costeira em âmbito internacional (ou Grande Cabotagem), pode deter vantagens competitivas não apenas para movimentar produtos de baixo valor agregado (como combustíveis e minérios), mas também produtos de médio valor – sejam esses transportados como carga geral (solta em porão) ou em contêineres [4].

Tabela 1
Principais fluxos de comércio bilateral dentro do MERCOSUL e principais países associados no ano de 2015

Países

Grupo de Produtos

US$ Milhões

Argentina - Brasil

Veículos

12.165

Bolívia - Brasil

Combustíveis e óleos minerais

3.846

Argentina-Bolívia

Combustíveis e óleos minerais

2.792

Brasil - Chile

Combustíveis e óleos minerais

2.179

Chile-Equador

Combustíveis e óleos minerais

2.154

Argentina - Brasil

Reatores nucleares e, máquinas

1.932

Argentina - Brasil

Plásticos e suas obras

1.564

Equador - Peru

Combustíveis e óleos minerais

1.353

Brasil - Venezuela

Carnes e miudezas, comestíveis

1.351

10º

Brasil - Uruguai

Combustíveis e óleos minerais

1.336

11º

Brasil - Chile

Cobre e suas obras

1.230

Fonte dos dados: UN Comtrade Database, [s./d.]. Elaboração própria.

Como observado acima, tanto no agregado como por principais produtos, os principais fluxos bilaterais de comércio envolvem o Brasil e/ou a Argentina. Assim, a figura a seguir apresenta os três principais fluxos bilaterais do Brasil (com Argentina, Chile e Venezuela), os três principais fluxos bilaterais da Argentina (com Chile, Uruguai e Venezuela, excetuando-se o Brasil) e, ainda, os três maiores fluxos bilaterais entre os demais países considerados na amostra (Chile-Peru, Chile-Equador e Colômbia-Equador). Além disso, a Figura 5 descreve o índice de conectividade bilateral de transporte marítimo (LSBCI, de “Liner shipping bilateral connectivity index”) para cada par de países para o triênio de 2012 a 2014. O LSBCI, calculado pela UNCTAD (United Nations Conference on Trade and Development), expressa o nível de integração de um par de países dentro de redes globais de transportes marítimos regulares. Esse índice é calculado a partir de cinco componentes: i) o número de transbordos necessários para ir de um país A para um país B; ii) o número de conexões diretas comuns aos países A e B; iii) a média geométrica do número de ligações diretas de A e B; iv) o nível de concorrência nos serviços que conectam o país A para o país B e; v) o tamanho dos maiores navios na rota mais fraca que liga o país A ao país B. A partir de uma média simples dos cinco componentes, o índice varia de 0 (mínima conectividade) até 1 (máxima conectividade).

Figura 5
Índice de conectividade bilateral de transporte marítimo regular (LSBCI)
e comércio bilateral dentro do MERCOSUL e principais países associados no ano de 2015

Fonte dos dados: UN Comtrade Database, [s./d.];
World Bank, [s./d.]; UNCTAD, [s./d.]. Elaboração própria.

Ordenando a partir do maior fluxo bilateral de comércio, pode-se observar (Figura 5) que os valores do volume de comércio caem a medida que os índices de conectividade marítima são também menores.  Deve-se ressaltar que os valores observados para o LSBCI na amostra variam de 0,30 a 0,48, o que situa esses países em uma posição intermediária quando comparados a outros pares de países pelo mundo (por exemplo, países em desenvolvimento do Leste Asiático (como China, Hong Kong e Taiwan alcançam índices acima de 0,6 (UNCTAD, [s./d.])). Esse resultado permite afirmar que o grau de conectividade do transporte marítimo entre os países desta região do MERCOSUL e principais associados é ainda baixa, porém há um melhor desempenho de conectividade para aquelas trocas bilaterais de maior volume.

As Figuras 6 e 7, em suas partes (a), descrevem alguns dos principais grupos de produtos exportados e importados pelo Brasil ao longo de três triênios (2007-2009, 2010-2012 e 2013-2015) e a participação das vias de transporte na movimentação de cada um. A parte (b) destas figuras indica o potencial da Grande Cabotagem para esses produtos selecionados, em relação aos quais há uma concorrência de distintos modais ou soluções logísticas. Com base na distância entre a capital do estado no Brasil e a capital do país do MERCOSUL ou país associado e – a partir da literatura aplicada como ASLOG (1997) – definindo-se que: (i) a carga é prioritariamente rodoviária para pequenas e médias distâncias (até 500 quilômetros); (ii) a carga é potencialmente de Grande Cabotagem, para distâncias longas, superiores a 1200 quilômetros; e (iii) a carga é potencialmente movimentada por esses dois modais (ou outros) para distâncias intermediárias (entre 500 e 1200 quilômetros).

Vale destacar que os dados nas Figuras 6 e 7 referem-se somente às trocas comerciais brasileiras com os membros do MERCOSUL e seus principais associados, devido à representatividade do Brasil no comércio regional e a limitações de base de dados.

Figura 6
Exportações brasileiras para países do MERCOSUL
e Associados, por grupos de produto e via de transporte

Fonte dos dados: MDIC/AliceWeb, [s./d.]. Elaboração própria.

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Figura 7
Importações brasileiras para países do MERCOSUL e
Associados, por grupos de produto e via de transporte

Fonte dos dados: MDIC/AliceWeb, [s./d.]. Elaboração própria.

Percebe-se no caso das exportações brasileiras para os países do MERCOSUL e países associados que há o predomínio do modal rodoviário, principalmente nas vendas de fertilizantes e sal e cimento. No caso de papel e veículos, a participação do modal marítimo já é mais representativa, contudo a via rodoviária é também bastante significativa. Em importações, o market share do modal marítimo é maior nos quatro produtos selecionados, embora a via rodoviária seja sempre a segunda solução de transporte. A comparação da primeira parte – que descreve a alocação logística de cada produto por período de análise – e  a segunda parte (que indica uma escolha logística adequada por distância percorrida entre a origem e o destino) das Figuras 6 e 7 permite afirmar, no caso das exportações, que dos quatro produtos selecionados, há uma distribuição superdimensionada para o modal rodoviário nos casos de fertilizantes e, de modo mais pronunciado, de veículos. Quanto ao caso das importações, esse desequilíbrio é menos acentuado, podendo-se apontar apenas o caso de produtos da indústria de moagem (e.g., trigo).

5. Considerações finais

Do ponto de vista de um benchmarking do marco regulatório de navegação de cabotagem em vários países, pode-se afirmar – com base na revisão das definições e programas de incentivo – que há um significativo espaço para ampliar o conceito operacional e político da Grande Cabotagem no âmbito do MERCOSUL. Isso é, os princípios adotados na União Europeia, Estados Unidos e, mesmo, Argentina e Uruguai permitem uma ação institucional que trate a navegação costeira entre os países do MERCOSUL (incluindo seus associados) com incentivos que atribuam a esse modal um tratamento menos discriminatório, ratificando sua posição de competitividade em termos econômicos, ambientais e de segurança no transporte da carga.

A evidência empírica obtida indica um elevado potencial para a navegação de Grande Cabotagem no MERCOSUL. Exemplos de produtos que poderiam apresentar um maior market share para a Grande Cabotagem (em detrimento de modais terrestres, principalmente rodoviário) entre países do Mercosul e associados são veículos, fertilizantes e trigo. 

Por fim, é essencial um marco regulatório da Grande Cabotagem no MERCOSUL que preconize a não discriminação de embarcações de outros Estados-membros; ou seja, um tratamento aduaneiro e de preferências de atracação igualitário para as cargas movimentadas entre os países da região e que destaque que a navegação costeira necessita do mesmo tratamento dado à navegação de longo curso.

Referências

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1. Professor Titular, Departamento de Economia e Relações Internacionais e LABTRANS da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. e-mail: f.seabra@ufsc.br

2. Internacionalista, LABTRANS/Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.

3. Bolsista Relações Internacionais, LABTRANS/Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil

4. As vantagens de modal marítimo, de curta e média distância, em relação ao rodoviário são destacadas, por exemplo, por Paixão e Marlow (2002), para o contexto da União Europeia.


Revista ESPACIOS. ISSN 0798 1015
Vol. 38 (Nº 44) Año 2017
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