ISSN 0798 1015

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Vol. 40 (Nº 23) Ano 2019. Pág. 6

A alfabetização e letramento como ferramenta de inserção do sujeito

Alphabetization and literacy as a tool for insertion of the students

ARRUDA, Leticia 1; GROSCH, Maria S. 2 e DRESCH, Jaime F.

Recebido: 24/03/2019 • Aprovado:28/05/2019 • Publicado 08/07/2019


Conteúdo

1. Introdução

2. Metodologia

3. Constituição do sujeito

4. Conclusões

Referências bibliográficas


RESUMO:

Este estudo teórico aborda os aspectos do fazer pedagógico relacionados à alfabetização dos estudantes dos anos iniciais do ensino fundamental, considerando as condições sociais da constituição do ser humano. A análise fundamenta-se em autores que tratam das questões sociais, da alfabetização e do letramento. A formação continuada dos professores alfabetizadores é apontada como possibilidade para enfrentar os problemas identificados. Conclui-se que o desafio de melhorar as condições da educação é um compromisso político de todos os envolvidos no fazer pedagógico.
Palavras chiave: Alfabetização, Letramento, Condições sociais, Fazer pedagógico

ABSTRACT:

This theoretical study deals with the pedagogical aspects related to the alphabetization of the students of the initial years of elementary school, considering the social conditions of the constitution of the human being. The analysis is based on authors who deal with social issues, alphabetization and literacy. The continuing education of literacy teachers is indicated as a possibility to face the problems identified. It is concluded that the challenge of improving the conditions of education is a political commitment of all those involved in teaching.
Keywords: Alphabetization, Literacy, Social conditions, Teaching

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1. Introdução

Este artigo tem o propósito de analisar algumas questões referentes à formação do ser humano, relacionadas ao papel da escola como instituição capaz de mudar realidades e proporcionar melhores condições de desenvolvimento, bem como explicitar a necessidade do processo de alfabetização e letramento como ferramenta de autonomia e possibilidade de modificação da realidade. Deste modo, foi preciso aliar os estudos já realizados sobre a constituição do ser humano e as práticas vivenciadas, a esse momento inicial de escolarização. Sendo assim, os autores utilizados como base do estudo foram Langdon (2012), analisando a constância dos ritos e rituais no nosso cotidiano, Souza (2017), com a obra “A elite do atraso”, que demonstra a evolução histórica da divisão de classes, Mészáros (2005), com o resgate da educação para dar sentido à vida, Duarte Júnior (2000), que apresenta as ligações entre realidade e culturas. Aspectos desses textos foram relacionados ao processo de alfabetização, em consonância com estudos de Grosch (2018), Arendt (1992), Imbernón (2018), Scheibe (2008), Soares (2013; 2017) entre outros.

Ser educador exige uma série de habilidades necessárias ao sucesso do fazer pedagógico. Tal exigência torna-se cada vez mais evidente em face da percepção de que o ser humano constitui-se na diversidade, o que afeta diretamente os processo de formação humana. Quando uma criança chega à escola, uma bagagem de sentimentos e sensações lhe acompanha, e é necessário considerar esses aspectos no processo da alfabetização, uma vez que eles podem influenciar positiva ou negativamente. É imprescindível levar em conta a dimensão humana da criança, sua constituição social, cultural, histórica e emocional, considerando que é papel da escola proporcionar condições de perdurabilidade e utilização do aprendizado, bem como oportunizar condições para todos, independentemente das dificuldades encontradas.

Sabemos que a divisão de classes produz desigualdades cada vez maiores na maioria dos países, que situações de preconceito e discriminação aconteceram e continuam a acontecer, gerando violência e privações, cabendo à escola considerar também essas questões. Não se pode, simplesmente, fechar os olhos para fatos que ocorrem fora dos muros da escola, pois as crianças não deixam de se formar como seres humanos quando não estão na escola. Por isso, o contexto escolar deve considerar todo o contexto da vida das crianças, proporcionando um aprendizado integrado à realidade.

Arendt (1992) enfatizou ser a educação uma atividade básica e indispensável aos seres humanos e que a mesma sofre alterações continuamente, pois os atores principais de sua realização não são os mesmos, tendo em vista a renovação produzida pelas gerações que se sucedem. O professor, nesse sentido, tem a função de dar às novas gerações condições para que estas atuem no mundo. A formação, portanto, não seria um direcionamento, mas uma potencialidade para se viver.

Mészáros (2005), por sua vez, apresenta uma análise da educação relacionada à lógica do capital, sendo que a educação precisaria romper essa lógica e caminhar em direção de práticas pedagógicas mais inclusivas. No campo da alfabetização, Soares (2017) analisa as relações da escola pública e a divisão de classes, o que produz a expulsão dos menos favorecidos da escola, mediante práticas educativas excludentes.

Examinando esses e outros estudos, verifica-se a imprescindibilidade de análises teóricas que auxiliem no processo de formação do professor, além de uma ampliação no campo de perspectivas para fundamentar e elencar posicionamentos necessários, de forma a contribuir para um processo de alfabetização mais sólido e significativo frente às diversidades encontradas. Comprometer-se com a educação exige uma postura e um comprometimento direcionados às mudanças sociais necessárias, buscando identificar e relacionar tais mudanças aos conhecimentos e aprendizagens potencializadoras do desenvolvimento humano.

2. Metodologia

A pesquisa em questão compreende um estudo teórico, baseado em revisão bibliográfica, buscando relacionar o processo de alfabetização e letramento às condições sociais que se fazem presentes na sociedade, as quais afetam as oportunidades de aprendizagem que os estudantes acessam. Sendo assim, tratamos a educação como possibilidade transformadora, atribuindo aos professores um importante papel nesse processo. Com base nestes pressupostos, foram selecionados determinados autores e textos específicos, por meio dos quais foi possível estabelecer relações entre o papel da educação diante das relações e condições sociais das crianças.

3. Constituição do sujeito

Para compreender a educação de um modo mais amplo é preciso apontar alguns aspectos da constituição do ser humano. Desde o nascimento, nossa vida é permeada por ritos e rituais. Logo em sua chegada ao mundo, o bebê é submetido a inúmeras manifestações, tornando-os seres repletos de ações do conhecimento empírico. É nesse sentido que Langdon (2012, p. 18) afirma que “o homem é um animal ritual e que os ritos permeiam a interação social”. Conforme crescemos, vamos incorporando esses ritos às ações do nosso cotidiano. A criança, portanto, já é capaz de interagir com base no que vivenciou, enfrentando as situações através do que lhe é repassado ou por meio de suas observações, propiciando sua expressão, ainda que por meio de rituais:

No início do século XX, Arnold Van Gennep e Émile Durkheim reconheceram a centralidade dos ritos na constituição da vida social. Este último dedicou-se à comprovação de que a sociedade só pode ser estudada por intermédio das próprias regras que a governam e não pelas da psicologia. Para ele, a essência da sociedade localizava-se na consciência coletiva, que é irredutível aos indivíduos que compõe o grupo. Em sua principal obra, na qual explora a teoria do rito e das formas simbólicas, ele definiu a religião como a expressão dos valores e das normas morais da sociedade realizada por meio de atos rituais. Assim, o rito, na condição de forma externa da sociedade, compõe-se de atos significantes e de “crenças”, outra maneira de dizer que são significados simbólicos que expressam e organizam a sociedade (Langdon, 2012, p. 18).

Na chegada à escola, a criança se depara com inúmeras situações diferentes daquelas de seu convívio familiar, e há uma necessidade de adaptação que exige tanto auxílio da família quanto dos profissionais que lá trabalham. Os ritos de passagem favorecem uma adaptação mais tranquila nas mudanças de ciclos. Encerrada a etapa da educação infantil, inicia-se a do ensino fundamental, quando inúmeros e diferentes aprendizados serão oportunizados.

O ensino fundamental é a porta de acesso do estudante ao mundo da leitura e escrita, sem desconsiderar às práticas de conhecimentos que ele traz consigo. Porém, nesse estágio, ocorre de modo sistematizado o acesso aos saberes historicamente acumulados pela humanidade. Por essa razão, a educação deve primar pela garantia de equidade e acesso. Segundo o artigo 32 da Lei nº 9.394/96, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), o ensino fundamental deve assegurar:     

I- o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo; II- a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; III- o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores; IV- o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social (Brasil, 1996).

É na fase da alfabetização, que o estudante se vê diante da possibilidade de adquirir autonomia e condições para avançar por si só em seus conhecimentos. Também nessa fase há uma decodificação maior de símbolos, por meio da leitura e escrita, além do conhecimento gerado nas relações com o outro. Torna-se imprescindível que esse momento seja significativo para a criança, de modo que ela perceba seus avanços e visualize possibilidades de auxílio para realizar suas descobertas. A alfabetização e o letramento são processos presentes na vida dos sujeitos, a escola potencializa tais conhecimentos prévios. Ainda que a escolarização não seja a única forma de inserção no mundo letrado, ela tem condições de permitir o domínio da escrita, considerando a aprendizagem como um processo sociocultural.

Entende-se a alfabetização, portanto, como conhecimento e compreensão do mundo através da comunicação e expressão. O processo de alfabetização não é inerente à escola, pois se trata de uma prática social. Os sujeitos, quando chegam à escola, possuem uma gama de conhecimentos que lhe permitam a aquisição e domínio da escrita. Isso porque conhecem a escrita de diferentes modos e possibilidades, dominam a linguagem oral, são capazes de formular pensamentos lógicos e possuem uma percepção de mundo proporcionada pelas interações sociais familiares e com a comunidade onde vivem (Coan; Almeida, 2014, p. 150).

Nossas relações sociais são estabelecidas por meio das interações com esses ritos, uma vez que “a vida social é permeada e estruturada pelos ritos”, como aponta Langdon (2012, p. 18). Além disso, os símbolos são construções culturais utilizadas para orientar e dar significados ao mundo e às interações e ao comportamento humano e segundo Geertz (2008, p. 93), esses significados “[...] só podem ser ‘armazenados’ através de símbolos [...]”. O conjunto de símbolos regula e modela as demais relações do homem, são modelos da e para a realidade, os símbolos moldam a realidade e também se moldam a ela, algo que é restrito ao ser humano. A acumulação de símbolos significantes enriquece a cultura.

Por cultura entende-se a maneira pela qual vemos o mundo que não pode ser vista como uma simples palavra, mas como “[...] uma categoria intelectual um conceito que pode nos ajudar a compreender melhor o que acontece no mundo em nossa volta” (DaMatta, 2012, p. 113). Iniciando na escola, o estudante reproduz os significados e costumes da cultura familiar, modos de agir que podem ser diferentes dos colegas, e como tudo que é diferente, pode haver conflitos, que precisam ser analisados para se buscar as causas, mas também administrados de modo a se reconhecer as diferenças entre os sujeitos.

O nosso modo de vida depende da cultura em que estamos inseridos. Por vezes, julgamos determinados comportamentos relacionando-os à falta de cultura, porém não há mais ou menos cultura e sim culturas diferentes, de acordo com sua realidade. Respeitar as diferentes culturas e trabalhar esse conceito com os estudantes é papel também da escola, “a cultura permite trabalhar melhor a diferença entre nós e os outros e, assim fazendo, resgatar a nossa humanidade no outro e a do outro em nós mesmos” (DaMatta, 2012, p. 118).

Boa parte das relações sociais é estabelecida a partir do ambiente escolar, e através delas vamos moldando nossas atitudes e comportamentos, os quais podem ser negativos ou positivos – em função do julgamento que se faz, a partir de determinada cultura. Nosso comportamento, portanto, está relacionado às vivências que temos e às atitudes que vamos tomando diante dos problemas que surgem em nossa caminhada e, nesse processo, vamos formando nossa consciência. O mundo também pode ser significado por nós a partir da bagagem que carregamos – nossas vivências; quanto mais aprendo sobre o mundo e sobre mim mesmo, maior é minha capacidade de ler o mundo e dar sentido à realidade. Essa relação e interação com o outro ocorre, principalmente, através da linguagem, que é parte da própria realidade. Compreendemos, nesse sentido, que “a linguagem de um povo é o sistema que lhe permite organizar e interpretar a realidade, bem como coordenar as suas ações de modo coerente e integrado” (Duarte Júnior, 2000, p. 24). Nesse contexto, “[...] a linguagem é, ao mesmo tempo, o principal produto da cultura, e é o principal instrumento para sua transmissão” (Soares, 2017, p. 26). Essa linguagem faz parte da bagagem cultural que a criança traz consigo, ao adentrar na escola, cabendo aos professores considera-la como parte importante do processo de aprendizagem.

Os professores alfabetizadores são os responsáveis pela inserção da criança no mundo letrado, são os mesmos que desempenharão a função de auxiliar esse estudante a desenvolver condições para uma maior autonomia na busca pelo conhecimento sistematizado. Na tessitura de tal questão, o material utilizado no Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa – PNAIC (Brasil, 2012), estabelece que a formação dos professores alfabetizadores precisa garantir que eles sejam capazes de:

Entender a concepção de alfabetização na perspectiva do letramento[...]; Aprofundar a compreensão sobre o currículo nos anos iniciais do ensino fundamental[...]; Compreender a importância da avaliação no ciclo de alfabetização[...]; Compreender e desenvolver estratégias de inclusão de crianças com deficiência[...]; Conhecer os recursos didáticos distribuídos pelo MEC[...]; Planejar um ensino na alfabetização[...]; Compreender a importância de organização de diferentes agrupamentos[...]; Criar um ambiente alfabetizador[...]; Entender as relações entre consciência fonológica e alfabetização[...]; Compreender a importância da literatura[...]; Reconhecer a importância do uso de jogos e brincadeiras no processo da apropriação do Sistema de Escrita Alfabética[...]; Analisar e planejar projetos e sequências didáticas[...];  (Brasil, 2012, p. 31).

De acordo com Soares (2013), o processo de alfabetização é algo que exige empenho e dedicação, pois é extremamente complexo, sendo imprescindível que os professores alfabetizadores tenham clareza sobre como ele ocorre, agregando o letramento à alfabetização, sem desconsiderar as especificidades de cada um. Ainda de acordo com a autora, é nessa fase escolar que conhecimentos e habilidades necessários posteriormente, serão adquiridos (Soares, 2013). Corroborando essa ideia, Scheibe (2008, p. 50) afirma: “Há necessidade de investimento massivo na formação de licenciandos, compondo licenciaturas integradas e novos desenhos curriculares, fortalecendo especialmente a formação de professores alfabetizadores”.

3.1. A educação como possibilidade de transformar realidades

Desde muito pequena, a criança percebe que através da linguagem ela consegue transmitir o que sente e atingir o que almeja. Inicialmente, isto ocorre por meio das linguagens visual e sonora, posteriormente, ela passa a imitar os sons que ouve e começa a falar, construindo sua realidade pelas vivências. De acordo com Duarte Júnior (2000, p. 36), “a construção da realidade depende da maneira como o conhecimento é disposto na sociedade, o que fornece a ela uma certa estrutura. A estrutura social é basicamente construída sobre a gama de conhecimentos de que se dispõe socialmente”, conhecimentos esses que são propagados em maior quantidade na escola e, quando se atinge certa autonomia, pode-se ter acesso aos conhecimentos segundo as demandas e interesses individuais.

Desse modo, o papel da alfabetização e letramento é funcionar como o ponto de partida desse processo de construção da autonomia. Quando inicia seu processo de alfabetização e letramento no contexto escolar, a criança vê o mundo com novos instrumentos, abrindo-se inúmeras possibilidades de aprendizagem.

É função do professor alfabetizador acolher essas diferentes culturas perceptíveis na classe, conhecer e analisar as realidades que são apresentadas e construir caminhos para superar defasagens e disparidades. Sendo assim, a cada ano e em cada classe, mudam as necessidades, pois mudam as realidades e a percepção dessas diferenças. Compreender a realidade, nessa perspectiva, depende de nossa visão de mundo, considerando também a que grupos estamos inseridos, pois “a realidade que habitamos tem a sua definição ditada pelos grupos sociais e culturais a que pertencemos” (Duarte Júnior, 2000, p. 101).

Embora pareça algo complexo, é necessário ter essa percepção quando se trabalha com crianças, pois elas não chegam à escola como folhas em branco, mas sim carregam em si muitos e variados conhecimentos e verdades, captam muito rapidamente tudo que acontece ao seu redor, o que lhes permite inúmeras possibilidades de aprendizagem, o que também demanda dos professores desenvolver uma atuação profissional eficaz, no sentido de orientá-las no processo de formação.

Em um universo de pluralidades como o da escola, há busca constante de realização da pessoa e suas singularidades, ao mesmo tempo em que se estabelecem contribuições para o avanço do gênero humano. O significado e o sentido do trabalho docente estão sempre ancorados nos fins sociais mais amplos, ainda que não se tenham clareza de tais propósitos. E nesse caso, a formação continuada pode atuar como espaço de ação, intermediando a discussão dos aspectos condicionantes da atividade do professor, buscando a exploração dos limites e das possibilidades oferecidos pelas condições existentes e investindo na promoção de transformações para além das condições dadas no espaço e tempo presentes. (Grosch, 2018. p. 73).

Concomitante a isso, se faz necessário recuperar a função da escola que, segundo Masschelein e Simons (2017), é aquela de proporcionar aos estudantes um distanciamento entre família e sociedade, ou seja, deve ser uma função de propiciar um tempo livre, para que novos conhecimentos e vivências possam constituir-se em oportunidades de aprendizagem. Segundo os referidos autores, “a escola é um tipo de vácuo no qual é dado tempo aos jovens e aos alunos para praticarem e se desenvolverem” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 73). Todavia, a sociedade segue impondo certas demandas, o que se percebe, entre outras dimensões, também na formação continuada que, em grande medida, vem sendo influenciada pelas exigências do mercado de trabalho. Na prática, isto faz com que os professores se preocupem mais com o resultado final, em detrimento das possibilidades do ato educacional e à sua função, como apontam Masschelein e Simons (2017, p. 98): “[...] a educação consiste muito mais em não dizer aos jovens o que fazer, é sobre transformar o mundo (coisas, palavras, práticas) em algo que fala com eles”. À escola, portanto, não cabe transformar os estudantes ou indicar caminhos para transformar a realidade, mas sim dar condições e instrumentos que lhes permitam exercer a cidadania, o que fica evidente na posição de Soares (2017):

Uma escola transformadora é, pois, uma escola consciente de seu papel político na luta contra as desigualdades sociais e econômicas, e que, por isso, assume a função de proporcionar às camadas populares, através de um ensino eficiente, os instrumentos que lhes permitam conquistar mais amplas condições de participação cultural e política e de reinvindicação social (p. 114).

Cabe à escola promover maneiras para que os estudantes demonstrem o que pensam e quais são suas percepções sobre a realidade. Tal habilidade vai sendo aprimorada de acordo com o acesso aos conhecimentos e o convívio com os diferentes. Mediante o processo educacional, os estudantes têm oportunidades de crescimento e são capazes de modificar conceitos e representações sobre a realidade. A educação, portanto, assume a função de proporcionar condições de aprendizagem e crescimento, à medida que se compreende a realidade e as possibilidades de atuação no mundo, constituindo-se como parte fundamental do processo de formação humana. Essa educação não se dá somente na escola, mas principalmente nela, pois na atual conjuntura é a escola que vem assumindo diferentes papeis em vários níveis do desenvolvimento humano. E como afirma Arendt (1992),

A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum (Arendt, 1992, p. 247).

É muito importante que na escola, todos estejam cientes de seu papel e o quanto podem modificar vidas e realidades. A alfabetização e letramento têm o caráter de oportunizar a aquisição de meios para demonstrar mediante a leitura e a escrita, conceitos, atitudes, saberes e percepções, que ocasionam transformações. “É preciso criar meios para que todos possam apropriar-se da linguagem escrita, percebendo-a não só como um direito que tem sido negado às classes populares, mas também como instrumento de compreensão e intervenção na realidade” (Jesus; Araújo, 2008, p. 139).  O professor é o mediador que busca, por meio da educação, auxiliar na formação e possibilitar condições de aquisição e ampliação de conhecimentos. Para realizar essa tarefa, o profissional deve ter a seu favor meios para realizar sua capacitação, entre eles as políticas de formação continuada, que se configuram como possibilidades para compreender e enfrentar as dificuldades do seu ofício. Para tanto, “A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porém sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por esse mundo” (Arendt, 1992, p. 239), na medida em que “A prática pedagógica é, também, uma prática social” (Grosch, 2018, p. 76).

Haja vista que, na maioria das vezes, a formação inicial de professores é deficitária, cabe à formação continuada a função de preencher as possíveis lacunas da formação de formadores. Imbernón (2011), em entrevista à Revista Gestão Escolar, considera que as deficiências na formação dos professores decorrem de uma “falta de vontade” do poder público:

Há muito tempo, a formação inicial dos professores é fraca. Ela denota grande despreocupação e falta de vontade por parte das administrações públicas em assumir a profissão e encarar o fato de que ela envolve valores morais e éticos e trabalha com alunos que vivem situações problemáticas diversas. Em um cenário ideal, o curso superior deveria girar sobre o eixo da relação entre teoria e prática educacional, além de oferecer uma visão holística e crítica das disciplinas - sejam de conteúdo científico ou psicopedagógico (Imbernón, 2011, não paginado).

Na escola pública, principalmente, há uma disparidade maior de acesso aos conhecimentos que os estudantes apresentam. Essas disparidades resultam do processo de exclusão produzido pela sociedade de classes, situação em que os estudantes precisam da atuação da escola para compensar minimamente a falta de conhecimentos – ou de capital cultural. Entretanto, as famílias com pouca ou nenhuma condição de subsistência, nem sempre conseguem perceber os efeitos do processo de escolarização. Para grande parte da população, a educação escolar não é o ponto principal de preocupação, pois tem que garantir modos de sobrevivência face às dificuldades do dia a dia, esperando muito pouco por parte do poder público.

Assim chegamos ao século XXI com cerca de vinte milhões de analfabetos, aos quais se somam outros tantos cidadãos que possuem apenas rudimentos de leitura e escrita [...]. Daí a responsabilidade da escola, especialmente da escola pública, de oferecer oportunidades de alfabetização e letramento a todos (Carvalho, 2011, p. 16).

Desde sua colonização, nosso país é dominado por sentimentos racistas e preconceituosos, mesmo após o advento da abolição da escravatura, manteve-se a divisão classista e a falta de oportunidades aos mais pobres. Isto se percebe em nossas escolas públicas, com o desamparo às crianças e às famílias, especialmente no que se refere à falta de oportunidades e à ampliação das desigualdades sociais. A sociedade precisa se responsabilizar pelos esquecidos e abandonados, que nascem predestinados ao fracasso e pertencem ao que Jessé de Souza (2017) denominou a “ralé brasileira”. A abolição da escravatura foi uma transformação fundamental para o Brasil, mas como os ex-escravos não receberam auxílio, o problema persistiu com a nova forma de degradação e extinção de possibilidades na classificação social, manteve-se as formas de dominação que de certa maneira continuam visíveis em pleno século XXI, “esse abandono e essa injustiça flagrante é o real câncer brasileiro e a causa de todos os reais problemas nacionais” (Souza, 2017, p. 84).

Se para alguns ainda existem possibilidades de sucesso, isto ocorre porque a maioria da população suporta situações extremas de marginalidade e exploração. Nossa “ralé” (Souza, 2017) cresce com baixa autoestima e sem confiança, competindo em condições desiguais, com carências materiais, cognitivas e afetivas, culpando-se por seu destino. A educação, em muitas situações, incorpora estratégias políticas para manter processos de alienação, contribuindo para reproduzir o sistema de classes, tornando-a subserviente aos interesses do mercado, configurando-a como uma “mercadoria”. “Daí a crise do sistema público de ensino”, como aponta Mészáros (2005, p. 16).

 Tendo em vista esta realidade, compreende-se que as mudanças necessárias na educação não se efetivarão pela simples disposição do poder público. Isso porque uma educação que possibilite aos cidadãos acessarem instrumentos para a ampliação da autonomia, pode levar ao acirramento dos conflitos de classe, produzindo transformações na sociedade. Sendo assim, a formação humana para a transformação da realidade pode até ser defendida nos discursos e nos documentos oficiais, mas sua implementação depende muito mais do que ocorre dentro dos muros da escola. Neste espaço pode-se adotar práticas que problematizem a lógica do capital, o estímulo ao consumo, a degradação humana e ambiental. Somente com cidadãos que tenham se apropriado da leitura e da escrita, que sejam capazes de ler e interpretar o mundo a sua volta conseguiremos realizar mudanças efetivas na sociedade. É função da educação, entre outras coisas, estimular a solidariedade, romper o pensamento individualista e competitivo, elaborar estratégias para mudar as condições objetivas, permitindo processos formativos capazes de emancipar os seres humanos. Mészáros (2005), nesse sentido, afirma:

Portanto, a nossa tarefa educacional é, simultaneamente, a tarefa de uma transformação social, ampla e emancipadora. Nenhuma das duas pode ser posta à frente da outra. Elas são inseparáveis. A transformação social emancipadora radical requerida é inconcebível sem uma concreta e ativa contribuição da educação no sentido amplo [...] a educação não pode funcionar suspensa no ar. Ela pode e deve ser articulada adequadamente e redefinida constantemente no seu inter-relacionamento dialético com as condições cambiantes e as necessidades da transformação social emancipadora e progressiva em curso (p. 76).

Muito se fala de uma crise na educação, mas na verdade a educação é constantemente desafiada a lidar com novos arranjos societários, em função de mudanças, como no caso das interações virtuais produzidas pelas tecnologias digitais. As questões e os desafios que surgem são diversos, propiciando o surgimento de narrativas como a da obsolescência da escola, segundo a qual esta instituição manteve-se inalterada por séculos, com a mesma organização espacial etc. Porém, tais narrativas não consideram que o ser humano que chega hoje à escola está cada vez mais apto a perceber que nem tudo na escola é ultrapassado e obsoleto, e que a educação tem um potencial transformador negligenciado, ainda que sozinha não possa mudar a sociedade. Diante disso, é preciso que os professores assumam seu papel político, buscando inclusive aperfeiçoar sua formação profissional, em prol da formação das novas gerações. Este é um compromisso fundamental da sociedade, educar os “recém-chegados”, como aponta Arendt (1992):

A educação está entre as atividades mais elementares e necessárias da sociedade humana, que jamais permanece tal qual é, porém se renova continuamente através do nascimento, da vinda de novos seres humanos. Esses recém-chegados, além disso, não se acham acabados, mas em um estado de vir a ser. Assim, a criança, objeto da educação, possui para o educador um duplo aspecto: é nova em um mundo que lhe é estranho e se encontra em processo de formação; é um novo ser humano e é um ser humano em formação (p. 234-235).

No que diz respeito à tarefa de educar as crianças, percebe-se como é importante a atuação da escola, desde a educação infantil. Quando se recebe um estudante com bom desenvolvimento nos anos iniciais, é mais fácil e prazeroso o andamento de novos aprendizados, percebe-se também que a convivência com diversidade humana é outro fator que contribui para a formação humana, em todos os sentidos, inclusive para o desenvolvimento da linguagem e da apropriação da leitura e da escrita. Por isso, todos os aprendizados possibilitados na educação infantil, período não só de cuidado, mas de brincadeira, de convívio e de descobertas, constituem a sustentação para o nível seguinte, o ensino fundamental. De acordo com Russo (2012, p. 14): “É preciso considerar que a alfabetização com qualidade nos anos iniciais contribuirá positivamente para a aprendizagem nos anos seguintes e para o desenvolvimento da criança”.

O objetivo da alfabetização é muito mais do que ensinar letras e números, é, principalmente, dar condições para que o sujeito em formação acredite no potencial da educação como ferramenta de transformação da realidade. Por isso, o professor assume a responsabilidade de garantir que esse estudante, mesmo com todas as dificuldades encontradas, acredite em seu potencial, busque formas de crescimento e modificação da realidade que vivencia.

Cabe à escola e professores que atuam nas turmas de alfabetização, criar estratégias para que evoluções ocorram, mas principalmente fazer com esses sujeitos sejam parte atuante na prática pedagógica, a fim de se tornarem cidadãos ativos e conscientes de seu papel na sociedade. A escola necessita reverter os processo de exclusão, o que pode iniciar na alfabetização, que é, em grande medida, a porta de entrada para o mundo letrado. Através de ações coletivas e embasamento teórico, sem dúvida inúmeras possibilidades podem surgir quando os professores identificarem as dificuldades e buscarem caminhos para solucioná-las.

Considerando a prática pedagógica uma prática social, partimos do pressuposto que a construção do conhecimento docente está sujeita às condições objetivas do trabalho pedagógico, em espaços de reflexão da teoria que embasa a prática e da prática que alimenta as possibilidades de ampliação da teoria. Para que os alunos se apropriem do saber escolar, de modo a se tornarem autônomos e críticos (Grosch, 2018, p. 80).

Temos uma realidade que não pode ser negada e nem esquecida, e é a partir dela que se pode oferecer condições para a formação humana, tornando o início da vida escolar mais atrativo e prazeroso, de modo que os estudantes sintam necessidade e vontade de permanecer na escola  e torná-la aliada de suas conquistas diárias. 

4. Conclusões

Neste trabalho abordamos questões referentes aos aspectos sociais que fazem parte da formação do ser humano, sob uma abordagem relacionada às percepções da formação inicial com ênfase no período da alfabetização escolar, em busca de uma formação integral e relacionada às circunstâncias vivenciadas pelo estudante. Conclui-se que se faz necessária uma retomada de conceitos, embasada nos conhecimentos produzidos no campo educacional, bem como a consideração das vivências dos professores e dos alunos, de modo que se possam obter as condições para uma prática pedagógica eficaz.

Por meio dos textos analisados, conseguimos identificar várias conexões que são possíveis na escola, baseadas nas relações sociais, que influenciam e até determinam as condições de vivência dos seres humanos. Historicamente, as relações foram pautadas por condições sociais nem sempre apropriadas à formação humana, e estas influenciam na bagagem de conhecimento dos estudantes, bem como na maneira com que percebem a escola, que pode ser como reprodutora ou transformadora da realidade e dos comportamentos.

Com este estudo, iniciamos um movimento que tenciona valorizar os conhecimentos socioculturais presentes no processo de alfabetização e letramento. Consideramos a importância da formação continuada de professores, que representa a oportunidade de se obter novos aprendizados e conhecimentos direcionados à transformação social, a partir da atuação docente na escola. Desse modo, o professor desempenha papel primordial na efetivação dessas transformações.          

Em virtude da realidade mencionada, demonstramos a importância da temática, que está diretamente relacionada ao fazer pedagógico, e nos coloca a par de diversas informações referentes ao processo de constituição do ser humano e da práxis necessária ao desenvolvimento do papel do professor na educação, levando em consideração diversos aspectos desse contexto.

Referências bibliográficas

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1. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Planalto Catarinense – UNIPLAC, Lages, SC, Brasil. Professora na Educação Básica da Rede Municipal de Lages. E-mail: letiarruda2908@gmail.com

2. Doutora em Educação. Docente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Planalto Catarinense – UNIPLAC, Lages, SC, Brasil. E-mail: selmagrosch@gmail.com

3. Doutor em Educação. Docente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Planalto Catarinense – UNIPLAC, Lages, SC, Brasil. E-mail: jaimefariasdresch@gmail.com


Revista ESPACIOS. ISSN 0798 1015
Vol. 40 (Nº 23) Ano 2019

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