ISSN 0798 1015

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Vol. 39 (Nº 43) Ano 2018. Pág. 20

Fundamentos da gestão democrática escolar em Paulo Freire

Fundamentals of democratic school management in Paulo Freire (Brazilian educator)

Luiz Alberto de ALCÂNTARA 1; Valdir BORGES 2; Sirley Terezinha FILIPAK 3

Recebido: 11/05/2018 • Aprovado: 20/06/2018


Conteúdo

1. Introdução

2. Metodologia

3. Considerações finais

Referências bibliográficas


RESUMO:

O presente artigo visa expor os fundamentos da gestão democrática escolar a partir do educador brasileiro de renome internacional, Paulo Freire. Observando o conjunto da obra do referido autor, é possível resgatar a essência da gestão democrática escolar permeando todo o corpus freireano. Na sua concepção de educação primada na dialogicidade e na participação inclusiva de toda a comunidade envolvida no processo ensino-aprendizagem e no seu entendimento de que todo ato educativo, implica uma atitude ética, encontramos o perfil do gestor democrático escolar. Não se constrói uma democracia escolar sem que o diálogo seja a base fundante e a metodologia empregada. Uma escola pautada por este modelo de Pedagogia que denominamos Pedagogia Libertadora Freireana, conduz a um processo de conscientização que questiona a própria realidade e o seu entorno, o contexto histórico-social em que educandos e educadores estão inseridos, possibilitando uma educação crítica que não somente realiza a hermenêutica da realidade, mas a transforma. Esta é a educação problematizadora que qualifica a toda a comunidade envolvida: gestores, diretores, educandos, educadores e a sociedade, onde se constrói a própria história, na autonomia, na cidadania, na participação e na democracia.
Palavras chiave: Gestão Escola. Democracia. Dialogicidade. Paulo Freire. Ética.

ABSTRACT:

This article aims to expose the fundamentals of democratic school management from the internationally renowned Brazilian educator, Paulo Freire. Looking at the whole of the author's work, it is possible to rescue the essence of democratic school management permeating the entire Freirean corpus. In its conception of primary education in the dialogue and inclusive participation of the whole community involved in the teaching-learning process and in its understanding that every educational act implies an ethical attitude, we find the profile of the school democratic manager. A school democracy is not built without dialogue being the founding foundation and methodology employed. A school based on this model of Pedagogy called Freireana Liberation Pedagogy, leads to a process of awareness that questions the reality and its surroundings, the historical-social context in which educators and educators are inserted, enabling a critical education that not only performs the hermeneutics of reality, but transforms it. This is problematizing education that qualifies the entire community involved: managers, directors, educators, educators and society, where one builds his own history, in autonomy, in citizenship, in participation and in democracy.
Keywords: School Management. Democracy. Dialogicity. Paulo Freire. Ethic.

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1. Introdução

A gestão escolar é ainda um campo pouco explorado no Brasil, pois, no ano de 1987, a revista Em Aberto apresentou um levantamento sobre a produção brasileira na área, constatou que em um total de 110 publicações, 51 eram artigos e 18 eram teses e dissertações sobre o tema. (LIMA, 2006, p. 12). Olhando para a realidade atual, com o crescimento das produções de artigos, dissertações e teses sobre o campo da gestão escolar, evidenciamos que este campo é muito fértil.

Paulo Freire foi gestor público na cidade de São Paulo entre os anos de 1989 e 1991, deixando-nos um legado que fundamenta e permeia os debates e discussões acerca do tema. Desta forma, procuramos apresentar um enfoque na gestão democrática fundamentada em Paulo Freire.

No decorrer deste artigo veremos que a gestão democrática escolar está ampara tanto na Constituição Federal (1988), quanto na Lei de Diretrizes e Basesda Educação (n° 9.394/96). Onde a “gestão democrática será ministrada no ensino público”. Neste contexto de ensino público, temos uma afirmação de Anísio Teixeira que nos inspira para uma democratização, quando cita: “só existirá democracia no Brasil no dia em que se montar no país a máquina que prepara as democracias. Essa máquina é a escola pública”. (TEIXEIRA, 1997, p. 27).

Naura Ferreira reconhece esta “máquina” que o supracitado autor Anísio Teixeira nos apresentou. A autora coloca a participação humana como ferramenta necessária para condução da máquina que prepara a democracia, quando afirma que:

(...) é indubitável sua importância como recurso de participação humana e de formação para cidadania. É indubitável sua necessidade para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. É indubitável sua importância como fonte de humanização”. (FERREIRA, 2001, p. 305).

Esta participação na democratização da escola pública não deve ser somente um ato político, pois, Naura Ferreira entende como formação cidadã, na busca da justiça social. Desta forma, a gestão democrática escolar deve envolver a escola como um todo, pois, “a democracia, antes de ser uma forma política é uma forma de vida” (BORGES, 2013, p. 186). Uma forma de vida que influencia a consciência e o comportamento do homem quando lançado ao debate, ao diálogo problematizador, com a participação, na busca de soluções dos conflitos enfrentados nas instituições escolares.

A participação dos professores, pais e toda comunidade efetiva e dá solidez para gestão democrática. Com a solidez da gestão os interesses do Estado podem caminhar junto com os interesses da escola e toda comunidade. Mas Vitor Paro (1997, 49-50) faz-nos refletir que, possivelmente encontraremos escolas despreparadas para enfrentarem desafios que possamos encontrar. Não muito diferente, encontraremos uma comunidade não muito preparada para gestão democrática participativa na escola. Desta forma, Vitor Paro ressalva a importância da contribuição, seja ela de tempo ou financeiro, para que crie uma maior cobrança da própria comunidade, mas também cria um estímulo, pois:

O que temos observado a esse respeito é que, na medida em que a pessoa passa a contribuir quer financeiramente, quer com seu trabalho na escola, ela se acha em melhor posição para cobrar o retorno de sua colaboração, e isso pode dar-lhe maior estímulo na defesa de seus direitos e resultar em maior pressão por participação nas decisões. (PARO, 1997, p. 51).

Este cuidado e reflexão necessária para o processo de democratização que Vitor Paro apresenta, também é ressaltado por Moacir Gadotti (2001, p. 24-29), quando nos alerta e solicita um olhar com cuidado quanto à conscientização necessária dos professores e toda comunidade a respeito da gestão democrática, pois, de nada adiantaria uma Lei de Gestão Democrática do Ensino Público que concede autonomia pedagógica, administrativa e financeira às escolas, se o gestor, professores, alunos, e demais atores do processo desconhecem o significado político da autonomia.

Para Moacir Gadotti, o exercício desta autonomia não é dádiva, mas sim uma construção contínua, individual e coletiva. Nestas perspectivas, efetivar uma gestão democrática escolar implica na participação de todos os segmentos da comunidade escolar, levando à construção de espaços dinâmicos, marcados pela diversidade e pelos modos de compreender a escola.

Há algumas décadas é discutido e debatido a importância atribuída a gestão da escola como instrumento para promoção da qualidade na educação (PARO, 1997, p. 12-19). Os discursos da modernização nas escolas não colocavam em questão apenas sua eficácia, mas também, a verdadeira função social da educação e da escola que se pauta na “preparação do cidadão para sua inserção na sociedade, na qual viverá como cidadão e como profissional de alguma área da atividade humana” (MORRETO, 2005, p. 73). De fato, também merece atenção os princípios e finalidades da educação, em especial o seu caráter público e democrático. Neste contexto:

(...) tornar as escolas eficazes tornar-se então, a principal meta das reformas, o que por sua vez, implicaria, adotar também uma outra visão de gestão escolar, que sinalizasse para a emergência de uma nova cultura na escola, ancorada em três eixos: a descentralização, a autonomia e a liderança escolar. (FONSECA, 1995, ET AL, p. 53).

Como vimos anteriormente, a democratização da escola pública é um processo que exige a participação de todos: os gestores, professores, pais e toda “comunidade educativa” (ALVES & VARELA, 2012), mas também está supracitada na Constituição Federal de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.394/96) e no Plano Nacional da Educação (10.127/2001).

2. Metodologia

Para realização da pesquisa optamos por realizar uma pesquisa documental e bibliográfica, que por meio de uma análise de conteúdo de documentos selecionados, estabelecemos um diálogo crítico com as fontes. Os dados foram problematizados com apoio nas obras de Barbu (1962), Borges (2013), Brasil (1988, 1996), Cury (2002), Freire (1965, 1968, 2003), Gadotti (2001), Lima (2007), entre outros, buscando compreender, analisar, refletir e dialogar os fundamentos da gestão democrática escolar em Paulo Freire.

2.1. Conceitos de administração e gestão

Administração escolar, algumas vezes é associada a administração empresarial. No início do XX alguns autores utilizavam e justificavam o uso destes termos. Assim sendo, buscaremos demonstrar as diferentes definições apresentadas em diferentes bibliografias. os termos utilizados e justificados pelos autores são: “Administração escolar” e “administrador escolar”, assim, como os termos: “gestão escolar” e “gestor escolar”. Desta forma, o “termo” “administração escolar” é citado por Lourenço Filho:

O conceito tem com base as teorias de Henry Fayol. Acredita que administrar é exercer a cooperação das relações dentro da escola, ou seja, a participação de todos na tomada de decisão. Os conceitos de eficiência e eficácia, assim como de Método Científico permanecem no decorrer de sua exposição. (MARINHO, 2014, p. 141).

A definição de “administração escolar” é apresentada de uma forma diferente por Anísio Teixeira. Para o autor, a “administração escolar” é um conceito que está intrínseco a função da escola, e por isso difere da administração de empresas. Para essa diferenciação entende-se a defesa da especificidade da escola, compreendendo esse lócus enquanto espaço de aprendizado, produção sem fins lucrativos e de trabalho exclusivamente pedagógico. Querino Ribeiro justifica a comparação entre a “administração escolar” e a administração empresarial. Ele compreende que a escola como empresa do Estado, um órgão público, regido por normas externas à ela própria. Dentro dessa definição ressalta o valor da escola e de sua função social. (MARINHO, 2014, p. 142).

O professor Vitor Paro (2012, p. 24) apresenta a “administração escolar”, em seu sentido geral como “[...] a utilização racional de recursos para a realização de fins determinados”, ou seja, a definição dos recursos mais adequados para as atividades que serão desenvolvidas com vistas ao objeto desejado, no caso da escola, transmissão dos conhecimentos historicamente acumulados.

Para Dinair Hora (2002), o termo “gestão escolar” fortaleceu-se, sobretudo na década de 1970, quando um movimento reagindo à concepção de administração escolar da época, que pressupunha um caráter de saber neutro e objetivo, sendo, no entanto, uma aplicação dos princípios da administração empresarial à realidade da escola, sem que levassem em conta os elementos próprios. Dessa forma, a ideia de “gestão escolar” defenderia uma prática, por parte dos atores da escola: “mais” política e “menos” técnica dos seus afazeres; o que exigiria então reflexão específica sobre as suas questões particulares e impediria que o setor educacional importasse práticas mecanicamente de serviços da área empresarial.

Para Heloisa Luck (2006) o termo ”gestão escolar” fortaleceu-se no final da década de 1980 para o início da década de 1990. Época em que houve no Brasil uma reabertura democrática e a promulgação da nova Constituição (1988); o que propiciou a adoção, nas escolas, de um cotidiano administrativo mais próximo a seus usuários.  De contra partida, a autora também define a “administração escolar”, quando afirma que o conceito de administração escolar como um afazer linear e mecanicista, em que as ordens eram emitidas, em nível hierárquico, do alto para o baixo, de forma unidirecional e sem grandes discussões. Dentre as definições de Heloísa Luck, ela aborta uma reflexão sobre a “gestão democrática”, da seguinte maneira:

Gestão Educacional corresponde ao processo de gerir a dinâmica do sistema de ensino como um todo e de coordenação das escolas em específico, afinado com as diretrizes e políticas educacionais públicas, para a implementação das políticas educacionais e projetos pedagógicos das escolas, compromissado com os princípios de democracia e com métodos que organizem e criem condições para um ambiente educativo autônomo (soluções próprias, no âmbito de suas competências) de participação e compartilhamento (tomada conjunta de decisões e efetivação de resultados), autocontrole (acompanhamento e avaliação com retorno de informações) e transparência (demonstração pública de seus processos e resultados). (LUCK, 2006, p.35-36)

Diante dos termos e conceitos até aqui apresentados sobre “administração escolar” e “gestão escolar” adotaremos o conceito de “Gestão Escolar”, por entender que este termo coloca em prática o espírito de Lei, por destacar a forma democrática com que a gestão dos sistemas de ensino das escolas, onde possam e devam ser desenvolvidas, pois, as Leis citadas anteriormente descrevem “gestão democrática”.

2.2. Paulo Freire e a gestão democrática escolar

É de suma importância destacar o que Paulo Freire entende por educação. A educação nada mais é que a “prática da liberdade” como descreve em sua obra escrita no exílio do Chile em 1965, antes ainda de Pedagogia do Oprimido. “Educação que, desvestida da roupagem alienada e alienante, seja uma força de mudança e de libertação”. (FREIRE, 2007, p. 44). Dividiremos em dois subitens para explicitarmos melhor a questão em voga, primeiramente, nos adentraremos na concepção de democracia freireana e os conflitos na gestão escolar e, em seguida, nossa exposição se deterá na gestão do diretor da escola.

2.3. A democracia e os conflitos na gestão escolar

Para que se consiga uma gestão democrática na escola faz-se mister uma pedagogia da dialogicidade comprometida com a busca da liberdade, da justiça, da ética e da autonomia do homem, sujeito de sua própria história e construtor do seu destino. Uma pedagogia assim entendida, em que a dialogicidade é a essência da educação como prática da liberdade (FREIRE, 2005, p. 89-99) é capaz de impulsionar uma gestão que priorize o diálogo, a participação e emancipação, que conduza à cidadania, à democracia. A experiência democrática somente é possibilitada pela educação, pois afirma Freire: “A democracia e a educação democrática se fundam ambas, precisamente, na crença no homem”. (FREIRE, 2007, p. 104).

Nos dias hodiernos vivemos novamente o perigo da despolitização da escola, a tal “Escola sem Partido”, quiçás, por ainda não compreendemos o que realmente é a vivência em uma sociedade democrática ou, talvez, porque neste país, o Brasil, nunca fomos tão amantes da democracia. Nesta esteira Paulo Freire se refere aos conceitos de democracia explicitados pelo sociólogo romeno, que trabalhou de 1976 a 1986 no departamento de sociologia da Universidade Federal de Brasília.

Zevedei Barbu entende a democracia e a ditadura pelo viés psicológico e sociológico, utiliza-se daquilo que entendemos como padrão, ou tipo de vida intercalando a análise da estrutura político-social com uma análise do comportamento social e da personalidade. A distinção fundamental entre democracia e ditadura está no fato destes dois sistemas compreenderem os fenômenos impulsionados pelas mudanças sociais. Sendo que nas democracias, facilmente, verifica-se a existência de estruturas sócio-políticas elásticas, flexíveis, onde as mudanças são bem assimiladas. Apesar de sabermos que a democracia é o governo da soberania do povo, tentar defini-la é uma tarefa difícil segundo o próprio sociólogo romeno Barbu:

La nazón está em que la validez de todos los conceptos fundamentales normalmente incluídos em tal definición se ha visto seriamente cuestionada por las diversas condiciones históricas em que se realizó la democracia. (BARBU, 1962, p. 19).

Para Zevedei Barbu, mais que um conceito político, a democracia é uma forma de vida, um esquema mental, ou, melhor ainda, a essência daquilo que compreendemos por democracia, está no fato dela representar um modo ético de vida. A democracia traz em si uma base racional da modalidade, sem isso não há soberania do povo, mas apenas discurso democrático.

Paulo Freire em Educação como prática da liberdade conhece e aprofunda a concepção de democracia que supra expusemos de Zevedei Barbu e sustenta que:

A democracia que, antes de ser forma política, é forma de vida, se caracteriza sobretudo por forte dose de transitividade de consciência no comportamento do homem. Transitividade que não nasce e nem se desenvolve a não ser dentro de certas condições em que o homem seja lançado ao debate, ao exame de seus problemas e dos problemas comuns. Em que o homem participe. (FREIRE, 2007, p. 88).

Após esse preâmbulo nos arriscamos a dizer que em muitas instituições a gestão democrática escolar ainda tem ranços de assistencialismo e de militarismo, pois compreendemos a democracia somente como um conceito político, mas ainda não conseguimos internalizá-la como um esquema mental, uma forma de vida, um modelo ético de vida. Sem essa hermenêutica democrática, teremos sérias dificuldades em implantar uma gestão escolar que seja, realmente, democrática, que inclua toda a comunidade escolar.

Vivemos em uma sociedade, a brasileira, que devido a índices insuportáveis de corrupção e dessossego nos marcos legislativo, político e judiciário, um verdadeiro desencanto com as instituições, ditas democráticas. Se a sociedade está em conflito, também a gestão democrática escolar está em conflito, por isso, a gestão escolar não pode camuflar e falsear, inverter a realidade, escondendo o conflito, mas desvendá-lo e afrontá-lo. Neste ponto, a gestão deverá responder aos conflitos na ordem pessoal, pedagógica e administrativa com uma “Pedagogia do conflito”, como pretende o freireano Moacir Gadotti, que a entende como a sua prática da educação, ou da gestão como prática do conflito.

A gestão democrática em uma pedagogia do conflito deve enfrentar toda forma de autoritarismo e submissão e subserviência ao poder estabelecido, onde o educador ou gestor assuma a educação com um papel predominantemente crítico do contexto histórico-social onde está inserido na busca sua autonomia e na construção de uma sociedade mais democrática, livre, justa e solidária. Quando o educador ou o gestor repensam a educação, a pedagogia, estão repensando a própria sociedade. Mas a final o que é a pedagogia do conflito? O próprio Moacir Gadotti assinala que:

Uma pedagogia do conflito é essencialmente crítica e revolucionária. Isso significa que ela não esconde as relações existentes entre educação e sociedade, entre educação e poder, ou seja, ela não esconde o papel ideológico, político da educação. (GADOTTI, 2001, p. 59-60).

Quando se aduz à pedagogia do conflito como uma pedagogia revolucionária, quer se ressaltar aquela ação pedagógica, seja do gestor ou do educador, capaz de interferir no contexto histórico-social como uma prática social transformadora, que impulsione as mudanças substanciais e significativas na sociedade. E, nos dias hodiernos, mais que outrora, vivemos em uma sociedade conflitiva com tantas contradições que são expostas diariamente nos telejornais e na mídia com um todo. Moacir Gadotti destaca quando o conflito se instaurou nas esferas da sociedade ou do poder:

Uma sociedade entra em fase de conflito quando as contradições existentes no seu interior rompem os laços orgânicos que as mantinham em equilíbrio. Toda sociedade graças a esse equilíbrio de forças opostas (contradições). [...] Por sociedade em conflito entendo aquela sociedade que conquistou o direito de falar, de dar voz ao seu grito sufocado. É assim que vejo nossa sociedade hoje. Uma sociedade, que ainda não conquistou sua liberdade, mas apenas a possibilidade de dizer que não é livre. (GADOTTI, 2001, p. 74).

Em seguida, dando continuidade à nossa reflexão acerca da gestão democrática em Paulo Freire, analisaremos o trabalho da gestão do diretor de escola.

2.4. A gestão do diretor da escola

Já temos afirmado que foi de suma importância a noção de democracia que Paulo Freire herdou do amigo e sociólogo romeno Zevedei Barbu, não como mero conceito político, mas como uma forma de vida. Temos dito também que vivemos em uma sociedade plural, fragmentada em conflitos, por isso, o trabalho do diretor escolar deverá ser pautado numa pedagogia que não esconda e camufle o conflito do clima escolar, mas que procure educar para a participação, a dialogicidade e para o comprometimento com a construção de uma nova história, uma nova sociedade pautada no equilíbrio entre diálogo e o conflito. Eis o trabalho do diretor de escola como afirma Márcia Lima:

O trabalho do diretor de escola é pleno de encontros e desencontros, conflitos, desafios e realizações. É muito comum que a realidade do cotidiano e exigências diversas afastem-no daquilo que tinha em princípio, como propósito. Por isso, é possível perceber como as equipes escolares anseiam por presença, atenção, sugestões decisões e encaminhamentos por parte do diretor. Os muitos problemas existentes no dia-a-dia das unidades escolares, entre os quais se destacam a falta de diálogo entre os colegas, os conflitos pessoais e as relações de poder que se estabelecem, todos prejudicam e provocam sentimentos de desencanto em relação à escola. O grande desafio hoje é (...) conseguir recriar um novo sentido para a condição humana. (LIMA, 2007, p. 37-38).

O diretor de escola, além de uma visão ampla do conjunto da escola com sua prática educativa, equilibrando o diálogo com a gestão do conflito na organização escolar. Ele também estrutura o clima escolar, conduzindo à participação de todos com a delegação e compartilhamento das responsabilidades de todos os envolvidos no processo educacional.

O diretor de escola é o promotor de uma gestão que conduz à emancipação por meio da educação, sem deixar-se contaminar pelo pragmatismo de tantas ideologias vigentes, nem sempre pautadas na transformação social, mas que buscam somente o ajustamento ou a adaptação ao modo de produção vigente. É muito importante que na sua gestão consiga desvelar a hermenêutica que apostou Theodor W. Adorno:

A educação seria impotente e ideológica se ignorasse o objetivo da adaptação e não preparasse os homens para se orientarem no mundo. Porém, ela seria igualmente questionável se ficasse nisto, produzindo nada além de pessoas bem ajustadas, em consequência do que a situação existente se impõe precisamente no que tem de pior. (ADORNO, 2000, p. 143).

Os gestores, diretores de escola, muito além de todo ajuste ou adaptação são os primeiros que devem enfrentar e resistirem à despolitização da escola pública brasileira, pois não há projeto pedagógico que não seja antes um projeto político, onde se possa emancipar, conscientizar para a cidadania e, consequentemente, aprofundar a democracia, para uma sociedade mais justa e igualitária. Eis o que, ainda, almejamos para a sociedade brasileira:

Pensar a educação nesta perspectiva torna-se uma tarefa ética, pois envolve nossa liberdade de escolhas e a discussão acerca de todas as nossas práticas e valores. Este é o fio condutor da prática educativa de Paulo Freire, não se pode pensar o ser humano distante da ética, menos ainda, fora dela. (BORGES & ALCANTARA, 2018).

Do contrário os gestores recairiam em uma educação bancária (FREIRE, 2005, p. 65-77) que é uma crítica contundente e profunda que Paulo Freire faz à burocratização da escola e da gestão escolar, onde a racionalidade é instrumentalizada, sendo assim, está excluída a participação dos atores educativos das grandes decisões da gestão escolar, o que é no mínimo alienante e repressivo. Cremos que ainda estamos andando a passos lentos no que tange à nossa inexperiência e no entendimento do que seja realmente a construção de uma gestão escolar democrática. Neste ponto ainda faz eco e se atualiza o que afirmou Paulo Freire há algumas décadas: “A superação da inexperiência democrática por uma nova experiência: a da participação, está à espera” (...). (FREIRE, 2007, p. 91). Estamos ainda à espera, pois, há grandes percalços, desencantos e tropeços na recente redemocratização do nosso país, o Brasil. Estes desassossegos e desencantos se fazem presentes na gestão escolar, que a nosso modo de ver, também está à espera.

À espera de ser realmente uma organização democrática promotora de uma prática da participação, que seja capaz de refletir e indagar os anseios dos atores educativos. Dessa forma, impulsionará e se pautará pelos caminhos da liberdade emancipatória que se demonstra na capacidade dos seres envolvidos no processo educativo de deliberarem sobre as suas condições de existência. Esse seria o ideal de uma “Educação como prática da liberdade”, no entendimento freireano, a gestão, ou a escola capaz de propiciar-nos uma organização educativa e pedagógica democrática, autodeterminante e autônoma. Não podemos esquecer a democratização na escola é mais englobante que a própria gestão da direção de escola, pois, ela implica na hermenêutica do ato de ensinar, como bem assegura Paulo Freire:

[...] avançamos pouco em matéria de democratização de nossa educação. Democratização a que nos entregamos inteiros. Na divisão de Educação, a da escola, a das diferentes relações que nelas se estabelecem -educadores, educandos, pais, mães, zeladores, educadores, escola, comunidade. Democratização da escola quanto a sua maneira de compreender o ato de ensinar. (FREIRE, 2003, p. 125).

Em nossa concepção do que seja um ideal de gestão democrática, segundo Paulo Freire, já demos alguns passos na democratização da gestão, mas ainda estamos longe do ideal por ele almejado.

3. Considerações finais

“Não há educação sem amor. Não há educação imposta como não há amor imposto. Quem não ama não entende o próximo e não o respeita” Essa afirmação de Paulo Freire em Educação e mudança expressa e condensa o seu pensamento acerca do ser humano, da vida, da educação e da gestão escolar. Poderíamos parafraseá-lo, que não há gestão democrática escolar sem amor, não há gestão escolar imposta, mas dialogalada, compartilhada e delegada entre todos os atores da educação. Somente operar-se-á qualquer mudança significativa na escola ou na gestão escolar, a partir da conscientização de que a democracia é uma forma de vida, um estilo de agir eticamente, uma mentalidade. A conscientização foi o grande impulso no conjunto da obra freireana, especialmente no que tange à Pedagogia do Oprimido e em Educação como prática da liberdade. A conscientização é a palavra geradora que define a meta ético-humanista freireana, bem como seu processo pedagógico, em que o ato de educar, sempre implicará uma atitude ética.

Esta palavra, a conscientização, ainda não foi assimilada e compreendida em muitas unidades escolares, ainda não a aplicamos no terreno fértil da gestão democrática escolar, pois não assimilamos ainda a democracia como forma de vida. Quando conseguirmos traduzi-la e demonstrar o papel da conscientização na gestão escolar, então teremos uma administração, gestão escolar capaz de respeitar, valorizar e incluir a todos os sujeitos e atores do ato educativo, partícipes da gestão democrática escolar. Ainda não conseguimos traduzir e aplicar essa palavra geradora, denominada conscientização, porque ainda não compreendemos e encaramos a democracia como forma de vida, mas somente como sistema político, conforme expusemos, ao nos referirmos à Zevedei Barbu, admirado e estudado por Paulo Freire. Ao observarmos e analisarmos a base jurídica da gestão democrática da escola brasileira, como há sido descrita, ainda restam muitos ranços de autoritarismo, assistencialismo e uma tradição educacional burocratizada, centralizadora imposta às escolas por políticas neoliberais e conservadoras.

O tema da administração, gestão escolar não é a temática específica de Paulo Freire, não foi a preocupação fundamental de sua investigação, mas está permeado no conjunto de sua obra, na sua visão de ser humano, de sociedade, de educação, onde podemos, perfeitamente, trazer para o terreno da gestão democrática escolar. Uma gestão não alienada e nem alienante, que não camufla o conflito existente em nossa sociedade, refletido nas diferentes unidades escolares, que nem inverte e nem falseia a realidade. Diante de toda ideologia que distorce o processo educativo, enfrente e afronta como uma contra-ideologia, mostrando que a educação não é e nem pode ser neutra, mas é compromisso social, político e, sobretudo, o ato educativo sempre implicará uma atitude ética. Este é o modelo de gestão escolar democrático pautado na concepção freireana. Este é o desafio ainda a ser alcançado na sua plenitude.

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1. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação da PUCPR. Membro do Projeto de Pesquisa Formação dos Gestores das Instituições de Educação no Paraná. PUCPR. Contato: luizalbertodealcantara@gmail.com

2. Professor da Escola de Educação e Humanidades, atuando na área de Filosofia e Educação da PUCPR. Mestre em Filosofia e Doutor em Educação. Curitiba-Paraná. Contato valdirb@hotmail.com

3. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação Stricto Sensu da PUCPR, coordena o projeto de pesquisa a Formação dos Gestores das Instituições de Educação no Paraná. PUCPR. Doutora em Educação pela PUCPR. Contato: sirley.filipak@pucpr.br


Revista ESPACIOS. ISSN 0798 1015
Vol. 39 (Nº 43) Ano 2018

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